21 de julio de 2013
Volta à Torre de Babel? Plinio Corrêa de Oliveira - "Folha de S. Paulo", 12 de agosto de 1980
"Folha de S. Paulo", 12 de agosto de 1980
Volta
à Torre de Babel?
Plinio Corrêa de Oliveira
Analisei em meu último artigo um aspecto da reação do público
brasileiro ante a personalidade de João Paulo II. Reação esta muito abrangente,
pois, à maneira de imensas vibrações, perpassou extensas massas humanas em
todos os setores da opinião pública. Homens de esquerda, como de centro ou de
direita, católicos, protestantes, cismáticos, judeus, budistas, maometanos,
espíritas, ateus: afluíram eles em quantidade para ovacionar João Paulo II, num
tumultuoso movimento de alegria. Deixava isto entrever, nessas multidões
sobressaltadas, politorturadas de nossos dias, a esperança de que, em contato
com os dotes pessoais – personalíssimos – do papa Wojtyla, receberiam,
juntamente com eflúvios de otimismo, de alegria, de simplicidade e de saúde, um
peculiar "know-how" para resolver, segundo fórmulas inéditas, os
problemas de cada indivíduo, de cada família, da nação inteira.
Por certo, no ânimo dos católicos não havia só esta
esperança, mas também a convicção de que Karol Wojtyla é o sucessor de Pedro.
Mas esta nobre convicção, baseada na fé, era um denominador comum peculiar aos
católicos. Entre católicos e não-católicos, o denominador era, o mais das
vezes, Karol Wojtyla, como pessoa resplandecente de específicos dotes
individuais. E o anseio de receber, no fundo abismo da aflição em que se acham,
algo que lhes sacie o desejo de despreocupação, paz e fartura. Transes de
aflição – anseios de felicidade: a alternativa é muito tensionante. Do fundo
desses anseios de bem-estar, de paz, de despreocupação que faziam arfar milhões
de peitos humanos reunidos junto a João Paulo II, pareceu-me exalar-se, pelo
próprio jogo dessa tensão, o sonho utópico de inteira felicidade terrena que
tantos dos presentes esperavam obter, menos de João Paulo II, do que de
Wojtyla.
Tal anseio me deixou, assim, preocupado, pois se apresenta
com um potencial de ingenuidade e uma precariedade emocional de que algum
demagogo poderá tirar, a qualquer momento, sinistro partido.
Não é deste mundo a concórdia sem jaça, a paz perfeita e
eterna entre todos os homens, todas as nações e todas as doutrinas, a felicidade
total. Nesta terra de exílio, as carências, as dissensões, as catástrofes são
inevitáveis. E numa visão cristã da vida leva, ao mesmo tempo, a
circunscrevê-la quanto possível, e a resignar-se a elas porque inevitáveis.
Esta dura lição, tão ingrata ao neopagão de nossos dias,
lembro-a num texto áureo de São Luís Maria Grignion de Montfort, o incomparável
apóstolo da devoção a Nossa Senhora.
Dissertando sobre a eterna luta entre a Virgem e a serpente,
mostra-nos ele a vida dos povos antes de tudo como uma grandiosa, trágica e
incessante guerra entre a verdade e o erro, o bem e o mal, o belo e o feio.
Batalha esta sem a qual a existência terrena do homem, desfalcada do seu
significado sobrenatural, perderia sua dignidade.
Comentando as palavras do Gênesis (3,15): "Porei
inimizades entre ti e a mulher, e entre a tua posteridade e a posteridade dela.
Ela te pisará a cabeça, e tu armarás traições ao seu calcanhar", observa
com profundidade o grande santo: "Uma única inimizade Deus promoveu e
estabeleceu, inimizade irreconciliável, que não só há de durar, mas aumentar
até o fim: a inimizade entre Maria, sua digna Mãe, e o demônio; entre os filhos
e servos da Santíssima Virgem e os filhos e sequazes de Lúcifer; de modo que
Maria é a mais terrível inimiga que Deus armou contra o demônio"(cfr.
"Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem", Vozes,
Petrópolis, 6ª ed., 1961, pp. 54-55).
E ele passa em seguida a descrever a grande guerra que
divide o homem inexoravelmente, até o fim da História. Tal guerra não é senão
um prolongamento da oposição entre a Virgem e a serpente, entre a progenitura
espiritual daquela, e a progenitura espiritual desta: "Ele lhe deu até,
desde o paraíso, tanto ódio a esse amaldiçoado inimigo de Deus, tanta
clarividência para descobrir a malícia dessa velha serpente, tanta força para
vencer, esmagar e aniquilar esse ímpio orgulhoso, que o temor que Maria inspira
ao demônio é maior que o que lhe inspiram todos os anjos e homens e, em certo
sentido, o próprio Deus"(op. Cit., p.55).
Dentro deste quadro, a "clemens, pia, dulcis Virgo
Maria" que o doutor melífluo, São Bernardo, cantou com tal suavidade no
"Salve Regina", nos é apresentada por São Luís Grignion como uma
verdadeira torre de combate ("Turris davidica", exclama a ladainha
lauretana).
Ao longo da História, os filhos de Nossa Senhora batalharão
até o fim do mundo contra os filhos de Satã. E a vitória final será dos
primeiros, pela interferência da Mãe de Deus: "Deus não pôs somente
inimizade mas inimizades, e não somente entre Maria e o demônio, mas também
entre a posteridade da Santíssima Virgem e a posteridade do demônio. Quer
dizer, Deus estabeleceu inimizades, antipatias e ódios secretos entre os
verdadeiros filhos e servos da Santíssima Virgem e os filhos e escravos do
demônio. Não há entre eles a menor sombra de amor, nem correspondência íntima
existe entre uns e outros. Os filhos de Belial, os escravos de Satã, os amigos
do mundo (pois é a mesma coisa), sempre perseguiram até hoje e perseguirão no
futuro aqueles que pertencem à Santíssima Virgem, como outrora Caim perseguiu
seu irmão Abel, e Esaú, seu irmão Jacó, figurando os réprobos e os
predestinados. Mas a humilde Maria será sempre vitoriosa na luta contra esse
orgulhoso, e tão grande será a vitória final, que ela chegará ao ponto de
esmagar-lhe a cabeça, sede de todo o orgulho. Ela descobrirá sempre sua malícia
de serpente, desvendará suas tramas infernais, desfará seus conselhos
diabólicos, e até ao fim dos tempos garantirá seus fiéis servidores contra as
garras de tão cruel inimigo. (op. Cit., pp. 56-57).
Bem entendido, nossos dias também têm sido, são e serão
sacudidos por esse entrechoque terrível, que não se confunde necessariamente
com as guerras do século, mas tem alguma relação com elas. E sobretudo tem uma
relação óbvia com as incontáveis revoluções que têm abalado o Ocidente, como
fora predito por Nossa Senhora em Fátima.
A supressão dessa luta por uma reconciliação ecumênica entre
a Virgem e a serpente, entre a raça da Virgem e a raça da serpente, rumo a uma
era na qual a cessação utópica do entrechoque acarrete uma composição entre
todos os direitos, todos os interesses, uma interpenetração de todas as línguas
sob um governo universal que será tão-só fartura e despreocupação; eis a grande
utopia contra a qual as massas se devem precaver. Eis o regresso (ou antes, o
retrocesso) à orgulhosa torre de Babel, que de todos os modos o neopaganismo
procura reerguer. Eis a bandeira toda tecida de ilusão e de mentira com que, em
todas as épocas, os demagogos procuram arrastar as massas insurrectas.
Eis também o que me pareceu ser o perigo no qual podem
descambar muitos daqueles que, vendo em nosso ilustre visitante de há pouco,
não (ou pelo menos não tanto ) o augusto Vigário de Cristo, mas um atleta ou um
demiurgo em matérias sócio-econômicas, à força de porem sua confiança no homem,
acabarem por subestimar ou esquecer que ele é o Vigário de Deus.
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