2 de septiembre de 2012

Hipocrisia na discussão do aborto


Hipocrisia na discussão do aborto

26 de agosto de 2012 | 0h 40
O ESTADO DE SÃO PAULO - LEE SIEGEL
NOVA JERSEY - O aborto foi explicitamente colocado no centro da disputa presidencial americana. Uma grande fogueira irrompeu depois que Todd Akin, um congressista republicano do Missouri que está concorrendo ao Senado, respondeu a uma pergunta sobre se o aborto devia ser legal para mulheres que haviam engravidado durante um estupro dizendo que "se for um legítimo estupro, o corpo da mulher tem meios para bloquear essa coisa toda". Em outras palavras, o congressista Akin, assim como outros membros do establishment republicano, acredita que corpo de uma mulher, como certos carros que automaticamente desligam o motor numa colisão, não se permitirá ser engravidado pelo estuprador.
Os liberais ficaram possessos, é claro, pintando Akin como um débil mental. E alguns dos mais destacados políticos republicanos - incluindo Mitt Romney e seu colega de chapa, Paul Ryan - denunciaram imediatamente Akin eles próprios.
Os dois lados estavam sendo insinceros. Não houve nenhuma debilidade mental na proposição medicamente infundada, mas fascinante, de Akin. Ele e outras pessoas "pró-vida" simplesmente não querem que mulheres recorram ao aborto sob o falso pretexto de terem sido estupradas. E Akin não destoa em nada do pensamento republicano dominante sobre o assunto - tanto Romney como Ryan são passionalmente contrários ao aborto, e Ryan tem se oposto a ele mesmo em casos de estupro. Os republicanos indignados que estão denunciando Akin não querem perder o voto das mulheres nas eleições de novembro.
Seja qual for a posição sobre o aborto - e toda sociedade aberta tem sua própria abordagem com frequência debatida acaloradamente -, a ideia de que o aborto está despontando pela primeira vez no centro do discurso americano nesta temporada eleitoral é ingênua. Desde 1973, quando a decisão da Suprema Corte conhecida como Roe vs. Wade legalizou o aborto, este tem sido questão fundamental na política americana, ponto. Enquanto pessoas pró-vida conhecem e compreendem as emoções ferozes que mobilizam seus oponentes "pró-escolha", a maioria dos liberais pró-escolha não consegue captar a profundidade do sentimento por trás da posição pró-vida. Eles não compreendem que se você acredita que a vida começa na concepção, então a ideia de milhões de seres humanos sendo assassinados a cada ano é insuportável. Por admiráveis que sejam muitos aspectos do liberalismo, é uma característica da mentalidade liberal não conseguir compreender aquilo de que discorda.
O aborto tem um nível simbólico, também. A forte acrimônia que cerca a questão nos Estados Unidos tem muito a ver com as ideias radicalmente diferentes sobre o prazer. O debate sobre reprodução é também um debate sobre sexo. É um debate sobre até onde pessoas iriam para se satisfazer. As dimensões de vida e morte e sexuais da questão do aborto tornam impossível se chegar a um consenso social sobre ela.
É por isso que Roe vs Wade acabará sendo derrubada. Cedo ou tarde, a Suprema Corte se tornará um tribunal dominantemente conservador, e os magistrados reverterão a decisão da Corte sobre o aborto. A questão se uma mulher tem o direito de abortar será remetida então aos Estados, e cada um a decidirá à sua maneira.
Os Estados Unidos tiveram uma guerra civil e nenhum golpe de Estado. Quando Roe vs Wade for derrubada, poderá haver perfeitamente um golpe e uma guerra civil. Não foi por acaso que o furor atual sobre o aborto começou no Missouri. O chamado "Acordo do Missouri" de 1820 permitia a escravidão no Estado, mas - para simplificar um acordo complicado - a proibia em áreas circundantes, e o resultado é que o país ficou dividido em Estados escravistas e Estados livres. Essa solução fatídica de um problema trágico foi um dos fatores que precipitaram a Guerra Civil. Num mundo pós-Roe vs Wade, os EUA também ficarão divididos em duas regiões: Estados pró-vida e Estados pró-escolha.
Quase dá para ver a distopia resultante se desenrolando em nossa imaginação. Os Estados pró-vida terão uma profusão de orfanatos controlados pelo Estado para as mulheres que foram engravidadas por estupro ou incesto, ou são simplesmente pobres demais para criar um filho em segurança. As crianças mais dotadas talvez sejam dadas de presente aos membros mais piedosos da comunidade. As mães que os derem serão levadas a trabalhar nas fronteiras em pé de guerra da região, servindo aos soldados que ali estão estacionados permanentemente.
Na região pró-escolha, os privilégios reprodutivos das mulheres serão determinados pela qualidade genética da mãe e do pai. Visto que os liberais americanos são discretamente fascinados pela eugenia - sob o disfarce "respeitável" de sociobiologia e psicologia evolucionista -, eles não sentirão nenhuma culpa de permitir que mães de "alta qualidade" tenham dois filhos, enquanto mães de "nível médio" só poderão ter um. Mães que pontuarem mal nos testes padronizados que asseguram a ordem social serão enviadas às fronteiras pró-escolha, onde também servirão às tropas e lançarão olhares noturnos furtivos a suas congêneres, as mães pró-vida que entregaram seus filhos ao Estado.
Ambos os lados serão regidos por uma ilógica monstruosamente desumana. Mas numa sociedade que nem consegue tornar ilegal a posse individual de rifles de assalto semiautomáticos, ou decidir por um acordo sobre o sistema de saúde que proteja seus cidadãos, o pesadelo pós- Roe vs Wade provavelmente parecerá racional.

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