27 de noviembre de 2015
Nossa Senhora das Graças e a Medalha Milagrosa — Bastidores de uma História
Fonte: Revista Catolicismo, nº 515, novembro/1993
O ciclo anual das festas litúrgicas nos traz, neste mês de novembro, no dia 27, a comemoração de Nossa Senhora da Medalha Milagrosa.
Na oportunidade de cada festa, a Igreja Católica sabe oferecer à consideração dos fiéis aspectos novos e antigos, que alimentam as almas, renovando nelas a fé, a esperança e a caridade, e todas as virtudes.
Inspirado no exemplo da Igreja, Catolicismo apresenta hoje a seus leitores aspectos pouco conhecidos das admiráveis revelações da Medalha Milagrosa, com que foi favorecida Santa Catarina Labouré [imagem ao lado].
Decorridos 163 anos dessas aparições e 117 anos após a morte da santa, não há inconveniente em revelar, com o devido respeito, a luta de bastidores que a vidente teve que travar, a fim de que fossem acatadas fielmente as orientações de Nossa Senhora a respeito dessa Medalha.
Essa fidelidade e firmeza de Santa Catarina Labouré revelarão a muitos leitores a verdadeira fisionomia da santidade, que só se pode encontrar na Igreja Católica.
* * *
Conforme os tempos e os lugares, formam-se, em meio ao povo fiel, noções correntes sobre o que seja a santidade, que nem sempre correspondem à concepção autêntica da Igreja.
Certa escola de espiritualidade, que concedia uma prioridade exagerada à doçura, à bondade e à tolerância em detrimento da fortaleza, da combatividade e das virtudes austeras, começou a inculcar seus princípios em fins do século XVIII, em plena fermentação da Revolução Francesa. Ela se opunha assim –– caindo no excesso oposto –– ao azedume e ao rigorismo moral mal entendido que, por obra do jansenismo, contaminara incontáveis ambientes católicos, inclusive, alguns deles, avessos doutrinariamente a essa perniciosa heresia.
Tal escola encontrou o caldo de cultura propício para a sua proliferação com o advento do romantismo, logo no início do século XIX, e estendeu suas vagas dominadoras até quase nossos dias, quando, por seu turno, como fruto para muitos inesperado do Concílio Vaticano II, uma onda de dessacralização começou a varrer a Igreja.
Não é propósito deste artigo tratar nem dos resquícios de jansenismo, hoje quase extintos nas manifestações da piedade católica, nem, muito menos, do tema –– entretanto quão atual! –– da tormenta pós-conciliar, que provocou amargurados comentários do próprio Paulo VI, o Pontífice que levou a termo e promulgou, com sua autoridade, os documentos do Concílio Vaticano II.(1)
Tomemos, sim, como objeto de nossas reflexões aquela devoção sentimental e romântica que caracterizou o tipo de mentalidade acima referido e cujos representantes sobrevivem como náufragos pairando sobre as águas, na onda dessacralizante e avassaladora de nossos dias.
Se esses católicos remanescentes de outras eras –– não tão poucos, ao contrário do que geralmente se pensa –– souberem corrigir sua visão destorcida da piedade, ainda poderão colocar em ação os remédios eficazes para enfrentar e vencer os males da atual crise na Igreja e na Cristandade.
Santa Catarina Labouré e as admiráveis revelações da Medalha Milagrosa são temas que Catolicismotem repetidamente tratado.(2)
A espiritualidade dulçurosa que desejamos por em foco imagina que, exclusivamente por sua mansidão e sem nenhuma forma de energia e de combatividade, os santos conquistam os corações, são por todos compreendidos, reconhecidos como tais em vida e, mal expiram, desde o leito de morte os cercam a veneração e o culto dos que com eles conviviam.
Com a vidente da Medalha Milagrosa houve muito disso. Porém, não apenas isso. Os exemplos de sua vida, e o que se seguiu após sua morte, mostram uma e outra coisa.
Santa Catarina Labouré foi contrariada desde os primórdios de sua vida religiosa pelo Pe. João Maria Aladel [imagem ao lado], confessor do noviciado das Filhas da Caridade, a quem a santa confiara a mensagem que recebera de Nossa Senhora.
Prevendo isto, a Mãe de Deus –– Rainha dos Profetas –– já desde a primeira aparição orientara a então noviça Catarina Labouré sobre como conduzir-se em relação ao seu diretor espiritual:“Sereis contrariada. Mas recebereis a graça. Não tenhais medo… Dizei tudo com confiança e simplicidade. Tende confiança. Não temais”.(3)
Essa aparição se deu na noite de 18 para 19 de julho de 1830, festa litúrgica de São Vicente de Paulo.
Quatro meses mais tarde, no dia 27 de novembro, Nossa Senhora aparece novamente, mostrando-lhe o modelo de uma medalha que ela deveria mandar cunhar, e que seria o veículo de incontáveis graças. A Mãe de Deus a fez “compreender quanto era agradável rezar a Nossa Senhora, e como Ela era generosa para com as pessoas que rezassem a Ela. Quantas graças Ela concedia às pessoas que lhas pedissem, e que alegria ela sentia ao concedê-las”. (4)
O Pe. Aladel recebeu este novo relato da noviça com indisfarçado mau humor: “Pura ilusão! Se quereis honrar a Nossa Senhora, imitai as suas virtudes, e precavei-vos contra a imaginação!”.(5)
Depois de muitas insistências da vidente, e sobretudo impressionado com o cumprimento das profecias que ela lhe comunicara sobre a revolução de julho de 1830, o Pe. Aladel resolveu abrir-se com seu superior (Pe. Etienne), e ambos, na primeira oportunidade, obtêm do Arcebispo de Paris autorização para cunhar a medalha.
Tudo agora parecia correr sobre os trilhos. Mas as obras de Deus sofrem percalços inesperados.
Por conta própria, o Pe. Aladel modificou a efígie da Mãe de Deus que aparece na Medalha Milagrosa: na visão de Santa Catarina, Nossa Senhora segura com ambas as mãos um globo de ouro, encimado por uma pequena cruz, que Ela oferece ao Padre Eterno. Nas mãos, três anéis em cada dedo. Das pedras preciosas desses anéis partem raios de luz que significam as graças que a Mãe de Deus esparge sobre a humanidade. Nesta posição das mãos, os raios de luz caem, como é natural, para baixo e para adiante. O Pe. Aladel houve por bem suprimir o globo das mãos de Nossa Senhora, e representar as mãos pendentes, de modo que os raios partem da ponta dos dedos e das palmas das mãos…
Detalhes sem importância, dirá algum espírito superficial.
A Irmã Catarina Labouré não pensava assim: na impossibilidade de corrigir a efígie da medalha batalhou a vida toda para que ao menos fosse feita uma imagem na atitude verdadeira, e colocada num altar, no local onde Nossa Senhora lhe aparecera pela primeira vez. O simbolismo da Santíssima Virgem como Rainha do Universo estaria assim preservado.
Na primavera de 1876, sabendo que lhe restava pouco tempo de viela, a Irmã Catarina, a quem o Pe. Aladel impusera silêncio sobre as aparições, sentiu necessidade de se abrir com sua superiora, a Irmã Jeanne Dufès [foto ao lado]. Esta ficou perplexa ao tomar conhecimento das modificações introduzidas pelo Pe. Aladel.
Um globo nas mãos! Como conciliar isto com a imagem da Medalha Milagrosa? A Irmã Dufès pensa que a Irmã Catarina está delirando:
— “Dir-se-á que estais louca!
— “Oh! não será a primeira vez!
O Pe. Aladel me chamava de ‘vespa danada’ [méchante guêpe]quando eu insistia sobre isso!”.(6)
— “Mas o que será da Medalha, se isto se divulgar?
— “Oh! il ne faut pas toucher à la Médaille!” (“Não se deve mexer na Medalha”) – retorquiu a santa…(7)
Com efeito, 45 anos depois de a Medalha ter dado a volta ao mundo, operando autênticos milagres e outras maravilhas da graça, não era mais oportuno alterar a forma pela qual se tornara conhecida.
A solução era pois fazer uma representação complementar, conforme pleiteava Santa Catarina Labouré.
A Irmã Dufès, entretanto, insiste:
— ”Mas se o Pe. Aladel recusou, ele teria suas razões…
— “Foi o martírio de minha vida”, replica a Irmã Labouré, que assim revela a batalha pertinaz que teve de conduzir para se manter fiel à revelação recebida.(8)
A Irmã Dufès pede que ela forneça os detalhes para o trabalho do escultor: os traços da Santíssima Virgem — orienta a Irmã Catarina não devem ser “nem muito jovens, nem muito sorridentes, mas de uma gravidade mesclada de tristeza, a qual desaparecia durante a visão, quando o rosto se iluminava com as claridades radiosas do amor, sobretudo no momento em que Ela rezava”.(9)
Feito o esboço pelo escultor, a Irmã Dufès manda que a Irmã Catarina o vá ver. Ela não consegue esconder sua decepção. “Não, não é isto!”. A Irmã Dufès a faz percorrer todas as lojas de imagens sulpicianas [do estilo de Saint-Sulpice] para tentar descobrir o modelo adequado. Pesquisa inútil.
Algumas semanas depois, a encomenda é entregue. A Irmã Dufès não a coloca na capela, mas, discretamente, em sua sala de trabalho, e manda chamar a Irmã Catarina. Esta analisa atentamente. Vários detalhes de sua descrição foram escrupulosamente atendidos: o globo de ouro encimado por uma cruz, a serpente esverdeada com manchas amarelas, que Nossa Senhora esmaga sob os pés. Mas Santa Catarina não manifesta nenhum entusiasmo; pelo contrário, faz uma careta.
A Irmã Dufès, um tanto decepcionada com o resultado de sua iniciativa, a admoesta:
— “Não vos torneis muito difícil. Os artistas desta terra não podem realizar o que eles não viram”.(10)
Quatro anos depois da morte de Santa Catarina Labouré, o Pe. Fiat, novo Superior-geral, manda fazer um modelo ampliado da imagem executada pela Irmã Dufès e instala-a num altar construído no local indicado pela vidente.
Depois de várias peripécias, em que a imagem da Virgem do Globo deveu ser retirada desse altar por determinação da Sagrada Congregação dos Ritos, foi ela finalmente reentronizada no mesmo altar, após intervenção pessoal de um Bispo lazarista junto ao Papa Leão XIII.
Resta saber por que o Pe. Aladel procedeu daquela maneira, rechaçando as reiteradas insistências da vidente.
Ao que parece, ele receava ter complicações com a Sagrada Congregação dos Ritos, cujas normas em matéria de iconografia eram então muito estritas, preferindo ater-se aos modelos já consagrados pelo uso. O receio não era de todo infundado seja dito como atenuante, em defesa do Pe. Aladel —, conforme depois se comprovou no episódio da Virgem do Globo, resolvido apenas com a intervenção pessoal de Leão XIII, segundo acaba de ser dito.
Faltava, porém ao Pe. Aladel a ousadia dos santos. “Ide a Roma, obtereis mais do que pedirdes”, dizia a Irmã Catarina Labouré.(11) Previsão que se cumpriu ao pé da letra, após a sua morte.
O Pe. Aladel deveria ter tido em mente que se Nossa Senhora ordenou cunhar a Medalha de uma forma e não de outra, Ela haveria de dispor as coisas para que viessem de Roma as aprovações necessárias.
Enfim, Nossa Senhora aceitou a Medalha conforme foi feita, e inundou o mundo com o oceano de graças de todos conhecido [vide no final relatos de algumas graças obtidas em nossa Pátria]. Cabe, entretanto perguntar se tais graças não poderiam ter sido maiores. Esta era a opinião pessoal de Santa Catarina Labouré, para quem as sucessivas recusas do Pe. Aladel redundavam em vocações menos numerosas para as duas famílias religiosas fundadas por São Vicente de Paulo [imagem ao lado, na Capela da Rue de Bac em Paris]: os Padres da Missão (lazaristas) e as Filhas da Caridade.(12)
Considerando o conjunto das revelações com que foi favorecida Santa Catarina Labouré — as visões do coração de São Vicente de Paulo, a de Cristo-Rei despojado de suas vestes, o colóquio de 19 de julho com a Mãe de Deus, repassado de uma intimidade e ternura indizíveis, culminando, por fim, com as duas manifestações da Medalha Milagrosa –– é lícito pensar que, se tivesse havido fidelidade ao que foi determinado por Nossa Senhora, o oceano de graças derramadas sobre o mundo teria sido ainda maior. E isto teria possivelmente feito reverter o processo revolucionário, o qual vai encaminhando o mundo todo para a desordem, a confusão e o caos, num reino que não seria excessivo denominar de reino do demônio.(13)
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