Sem
menosprezo das críticas já formuladas aos aspectos econômicos, sociais ou científicos
do documento — no geral bem fundadas —,
parece-nos que tais aspectos são menos profundos e graves do que essa nova
concepção do homem e do universo.
Não
é demais lembrar que as obras de Teilhard de Chardin foram objeto de um Monitum (advertência) do Santo Ofício,
de 30.06.1962, no qual é afirmado que seus escritos abundam em ambiguidades e
“contêm mesmo graves erros que ofendem
a doutrina católica” ([3]).
3. Obscura concepção trinitária
O estranho misticismo da Encíclica reflete-se nas próprias
relações entre a Trindade e a Criação:
·
“O Pai é
a fonte última de tudo, fundamento amoroso e comunicativo de tudo o que
existe. O Filho, que O reflete e por Quem tudo foi criado, uniu-Se a esta
terra, quando foi formado no seio de Maria. O Espírito, vínculo infinito de amor, está intimamente presente no coração do universo, animando e
suscitando novos caminhos” (n. 238).
·
“Uma
Pessoa da Santíssima Trindade inseriu-Se no universo criado, partilhando a
própria sorte com ele até à cruz. Desde o início do mundo, mas de modo
peculiar a partir da encarnação, o mistério de Cristo opera veladamente no
conjunto da realidade natural, sem com isso afetar a sua autonomia” (n.
99).
·
“Segundo
a experiência cristã, todas as criaturas do universo material encontram o seu
verdadeiro sentido no Verbo encarnado, porque
o Filho de Deus incorporou na sua pessoa parte do universo material, onde
introduziu um gérmen de transformação definitiva” (n. 235).
·
“Cristo assumiu em Si mesmo este mundo
material e agora, ressuscitado, habita no íntimo de cada ser, envolvendo-o com o seu carinho e
penetrando-o com a sua luz” (n. 211).
·
“O universo desenvolve-se em Deus, que o
preenche completamente” (n. 233).
4. - Os sacramentos: matéria divinizada
Na Encíclica, essas
concepções, que parecem divinizar o universo material, como que
“sobrenaturalizando” a matéria, refletem-se numa nova Teologia dos Sacramentos
e numa nova Liturgia:
·
“Os
sacramentos constituem um modo privilegiado em que a natureza é assumida por
Deus e transformada em mediação da vida sobrenatural. Através do culto, somos
convidados a abraçar o mundo num plano diferente” (n. 235).
·
“A Sagrada Eucaristia (Corpo, Sangue, Alma e Divindade de
Cristo) é caracterizada pela Encíclica
como “um pedaço de matéria”:
·
“A
criação encontra a sua maior elevação na Eucaristia. A graça, que tende a
manifestar-se de modo sensível, atinge uma expressão maravilhosa quando o
próprio Deus, feito homem, chega ao ponto de fazer-Se comer pela sua criatura.
No apogeu do mistério da Encarnação, o
Senhor quer chegar ao nosso íntimo através de um pedaço de matéria”
(n. 236).
A Eucaristia é apresentada
ainda como um “ato de amor cósmico” que envolve todo Universo:
·
“Na
Eucaristia, já está realizada a plenitude, sendo o centro vital do universo,
centro transbordante de amor e de vida sem fim. Unido ao Filho encarnado, presente
na Eucaristia, todo o cosmos dá graças a Deus. Com efeito a Eucaristia é, por si mesma, um ato de
amor cósmico” (n. 236).
Em termos teilhardianos, o Universo, saído de Deus, voltaria
para Deus pela progressiva unificação de todos os seres materiais, inclusive
o homem. Assim é reconstituído em
sua inteireza o todo primevo.
Nessa linha de pensamento, não só Deus
cria o Universo, mas o Universo recria a Deus.
A Encíclica diz, citando o
patriarca cismático Bartolomeu de Constantinopla:
·
“Além disso nós, cristãos, somos chamados a «aceitar o mundo como sacramento de comunhão ... É nossa humilde
convicção que o divino e o humano se encontram no menor detalhe da túnica
inconsútil da criação de Deus, mesmo no último grão de poeira do nosso
planeta»” (n.
9).
5. - “Espiritualidade
ecológica”
Ao longo do
documento, a “ecologia”, o “meio ambiente”, a “natureza” são apresentados como
absolutos pelos quais se deve pautar toda a atividade humana – moral,
espiritual, econômica, educacional, etc. Com base nesses princípios, Francisco
propõe uma “espiritualidade ecológica”:
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Apêndice I
Teilhard,
o que dizes de ti mesmo?
O
panteísmo explícito de
Teilhard
de Chardin
Recordemos
brevemente o pensamento de Teilhard de Chardin naquilo que tem de mais
essencial, destacando o que está, de um modo ou de outro, subjacente ao texto
da Encíclica Laudato si’.
1.
Teilhard: “Sou essencialmente panteísta de pensamento e de temperamento”
O próprio Teilhard afirma seu panteísmo
em vários escritos. Entre estes, na carta de 14.01.1954:
· “Não
admito a posição ‘antipanteísta’ que me atribuís. Eu sou, pelo contrário, essencialmente panteísta de pensamento e de
temperamento: e eu passei toda a minha vida gritando que há um verdadeiro
‘panteísmo de união’ (Deus omnia in
omnibus) (um pan-cristão, dizia Blondel) em face do pseudo-panteísmo
de dissolução (oriental), Deus
omnia. E, neste capítulo, não encontro em mim nenhuma simpatia pelo
Criacionismo bíblico (exceto na medida que este fundamente a
possibilidade de União). Do contrário,
eu acho a idéia da criação bíblica
mais bem infantil e antropomórfica” (a).
Como
já diziam os gregos e como repete São Paulo, tudo está em tudo. A expressão é
perigosa, porque, mal entendida, levaria ao panteísmo. Seu verdadeiro sentido
é que Deus é a causa eficiente de todas as criaturas (porque as criou e as
sustenta no ser), e delas é igualmente a causa exemplar e a causa final. Os
seres criados são verdadeiros seres, como têm verdadeiras essências,
verdadeiras propriedades, etc. Mas o ser, a essência, as propriedades, etc.,
do ser criado são tão diferentes das de Deus, que essas palavras se aplicam
analogamente a Deus e às criaturas. É essa analogia que marca a rejeição de
qualquer panteísmo na doutrina católica, ao mesmo tempo que explica o
verdadeiro sentido do princípio omnia
in omnibus.
Em outra carta, de 02.01.1951, Teilhard
propõe
· “Uma
forma superior e sintética de ‘misticismo’, no qual a força e a sedução do panteísmo oriental convergem numa
culminância!” (b).
Ele
explica seu objetivo:
· “O que
eu proponho fazer é reduzir a distância entre o panteísmo e o cristianismo,
mostrando aquilo que se poderia chamar
de alma cristã do panteísmo ou o aspecto panteísta
do cristianismo” (c).
Parafraseando
Tertuliano, que disse que a alma humana é naturalmente cristã, Teilhard de
Chardin afirma que ela é naturalmente
panteísta.
· “A
tendência ao panteísmo é tão universal e tão persistente que deve haver algo
nela, uma alma (uma alma naturalmente cristã), uma verdade que clama pelo
batismo” (d).
Ele
pretende criar uma nova “espiritualidade” cristã-panteísta:
· “Em
relação ao meu ‘Evangelho’ … minhas possibilidades e tendências … [são] de ajudar a criar uma atmosfera espiritual … Isso, é evidente, é
uma atitude essencialmente cristã, mas enriquecida pela confluência da melhor
e mais sutil essência daquilo que está escondido por trás de vários panteísmos” (e).
Em carta à
sua amiga Lucille Swan ele de novo reafirma seu panteísmo:
· “Eu sou antes e essencialmente um panteísta
nato!” (f).
2. Cristo: “centro último para o qual caminha toda a
evolução”
J. L.
Illanes Maestre, professor de Teologia Dogmática na Universidade da Na-varra,
Espanha, em artigo sobre Teilhard de Chardin, depois de descrever o evolucionismo
do Jesuíta e falar do “ponto Ômega”, sintetiza:
· “Postulada assim
a existência de Deus
como princípio cósmico de convergência, Teilhard termina de expressar
seu sistema sobrepondo ao ponto Ômega
da evolução o Cristo da Fé. Cristo é,
pois, apresentado por Teilhard como Deus
que se submerge nas coisas e se introduz no psiquismo total da terra e, dessa
forma, se converte no centro último de reunião universal para o qual caminha
toda a evolução” (g).
Tratar-se-ia
de um pan-psiquismo em que o espírito está imerso na matéria, da qual vai-se
libertando aos poucos pelo processo evolutivo propulsionado por Cristo.
____________________
(a)
Apud
A.M. y C.C., Teilhard de Chardin,
Pierre – Opera omnia. Disponível em http://www.opuslib
ros.org/Index_libros/Recensiones_1/teilhard_obr. htm
(b)
Carta de Paris, de 02.01.1951,
in Cartas a Dois Amigos, https://archive.org/stream/LettersToTw
oFriends/Letters_To_TwoFriends_djvu.txt
(c) Cristianismo
e Evolução, p. 56, in https://ar chive.org/stream/ChristianityAndEvolution/Chri stianity _and_Evolution_djvu.txt
(d) The Heart of the Matter, p. 207, in https://archi ve.org/stream/Heart_OfMatter/Heart_of_Matter_djvu.txt
(e) idem, ibidem.
(g) J. L. Illanes Maestre, Teilhard de Chardin, Pierre, in Gran Encclopedia Rialp, Ed. Rialp, Madrid, 1975, vol. 22, p. 138.
|
9. Concluindo
Por tudo quanto acabamos de analisar, a “visão
filosófica e teológica do ser humano e da criação” apresentada pela
Encíclica é incompatível com o
dogma católico e com a sã filosofia, e portanto inaceitável. É o que lamentamos
sermos obrigados a apontar, ressaltando que é inaceitável não só pelos graves
erros que contém mas também por suas insinuações, ambiguidades, omissões,
unilateralidades, todas elas orientadas no sentido do favorecimento de uma
cosmovisão panteísta.
Como se vê, não se reconhece na Encíclica Laudato si’ a voz fiel, suave e firme do
Bom Pastor que a Igreja sempre nos apresentou. Não se reconhecem, igualmente,
os traços sobrenaturais dos ensi namentos de São Paulo, segundo os quais não
pode ser recebido outro Evangelho, ainda que anunciado por “um
anjo baixado do céu” ([5]).
Pergunta-se: um documento oficial da Igreja, com a
solenidade de uma Carta Encíclica, pode merecer reservas de tal porte, sem
que com isso estejam abalados os princípios da indefectibilidade da Igreja e
da infalibilidade do Magistério? Em meu trabalho sobre a Hipótese Teológica de um Papa Herege ([6])
abordei esse assunto.
“Resisti-lhe em face, porque merecia repreensão”.
Com essa frase
o Apóstolo São Paulo justifica sua resistência a São Pedro a respeito da
observância dos ritos judaicos pelos cristãos.
Será
legítimo, em casos extremos, opor-se a ensinamentos papais não garantidos
pela infalibilidade ou resistir a decisões do Soberano Pontífice? Respondendo
a essa pergunta, transcrevemos a seguir alguns textos relativos à resistência
pública a atos do Papa.
·
Santo Tomás de Aquino ensina, em diversas partes de
suas obras, que em casos extremos é lícito resistir publicamente a uma decisão
papal, como São Paulo resistiu em face a São Pedro: “(...) havendo perigo próximo
para a fé, os prelados devem ser arguidos, até mesmo publicamente, pelos
súditos. Assim, São Paulo, que era súdito de São Pedro, arguiu-o
publicamente, em razão de um perigo iminente de escândalo em matéria de Fé.
Como diz a Glosa de Santo Agostinho, ― “o próprio São Pedro deu o exemplo aos
que governam, a fim de que estes afastando-se alguma vez do bom caminho, não
recusassem como indigna uma correção vinda mesmo de seus súditos” ([7]).
·
Francisco Suarez, SJ (1548–1617) “Se [o Papa] baixar um ordem contrária aos
bons costumes, não se há de obedecer-lhe; se tentar fazer algo manifestamente
oposto à justiça e ao bem comum, será lícito resistir-lhe; se atacar pela
força, pela força poderá ser repelido, com a moderação própria à defesa justa
(cum moderamine inculpatae tutelae)”
([8]).
·
São Roberto Bellarmino, SJ (1542-1621) – “(...) assim como é lícito resistir ao Pontífice que
agride o corpo, assim também é lícito resistir ao que agride as almas, ou que
perturba a ordem civil, ou, sobretudo, àquele que tentasse destruir a Igreja.
Digo que é lícito resistir-lhe não fazendo o que ordena e impedindo a
execução de sua vontade; não é lícito, contudo, julgá-lo, puni-lo ou depô-lo,
pois estes atos são próprios a um superior” ([9]).
·
Cornélio a Lapide, SJ (1567–1637) Mostra o ilustre exegeta que, segundo Santo Agostinho,
Santo Ambrósio, São Beda, Santo Anselmo e muitos outros Padres, a resistência
de São Paulo a São Pedro foi pública, para que, desse modo, o escândalo público
dado por São Pedro fosse remediado por uma repreensão também pública ([10]). Depois
de analisar as diversas questões teológicas e exegéticas suscitadas pela
atitude assumida por São Paulo, Cornélio
a Lapide afirma que os superiores podem ser repreendidos, com humildade e
caridade, pelos inferiores, a fim de que a verdade seja defendida; é o que
declaram, com base nesta passagem ([11]), Santo Agostinho ([12]), São Cipriano, São Gregório, Santo Tomás.
Eles claramente ensinam que São Pedro, sendo superior, foi repreendido por
São Paulo com razão, pois, disse São
Gregório ([13]):
Pedro calou-se a fim de que, sendo o primeiro na hierarquia apostólica, fosse
também o primeiro em humildade.
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Apêndice II
O
homem deixa de ser o Rei da criação corpórea
A Encíclica Laudato si’ afirma ou
insinua, em várias passagens, sem as necessárias distinções, que os seres não
racionais dão glória a Deus por si mesmos, por existirem, e que o homem deve levar isto em conta, e não os
tratar sem o respeito devido.
1.
- A doutrina tradicional
Não há dúvida de que todos os seres irracionais dão uma glória a
Deus que os teólogos chamam objetiva.
Mas por meio do homem eles participam da glória formal que o homem dá. São como um instrumento magnífico por meio
do qual o homem toca uma harmoniosa sinfonia de glória a Deus. Segundo a
interpretação tradicional do livro do Gênesis e o princípio enunciado por
Santo Tomás de Aquino de que o menos perfeito existe para o mais perfeito
(II-II, q. 64, a.1), o homem sempre foi visto como Rei da Criação corpórea.
Assim se expressa H. Pinard no verbete Création,
no Dictionnaire de Théologie
Catholique:
· “...
todos os Padres
[da Igreja] e os teólogos consideram o
homem de fato como o coroamento providencial do mundo sensível:
tudo está ordenado para ele uma vez que sem ele as coisas não atingiriam a
sua finalidade; a natureza não teria voz para louvar a Deus ... O homem foi
criado por último, dizem os Padres, precisamente porque convinha, antes de
introduzir o rei do universo, que tudo estivesse preparado” (III, col. 2172).
O Pe. José
F. Sagües S.J., em seu tratado De Deo
Creante et Elevante, diz com precisão:
· “A
nossa afirmação (...) de que o mundo existe por causa do homem, e certamente
para que o sirva em ordem à glorificação de Deus, é de fé divina e católica; e se se toma em
relação a cada uma das coisas que existem no mundo, é verdade certa em teologia.” (Sacrae Theologiae Summa, v. II,
Tractatus II, n. 204).
2.
A nova doutrina
A Encíclica vai mudar este
enfoque tradicional. Logo no segundo parágrafo a ideia do domínio do homem sobre
a terra é contestada:
·
“Crescemos a pensar que éramos seus proprietários e dominadores,
autorizados a saqueá-la” (n. 2).
Note-se o subterfúgio:
ligar a noção vinda do Gênesis, de que o homem deve dominar a terra, com a de “saqueadores”. Esse mesmo recurso será
usado adiante para desfazer a clareza do mandato do livro sagrado:
·
“Deus os abençoou: ‘Frutificai,
disse ele, e multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a. Dominai sobre os
peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todos os animais que se arrastam
sobre a terra." (Gen 1,28).
Diz a Encíclica:
·
“Se é verdade que nós, cristãos, algumas
vezes interpretamos de forma incorreta as Escrituras, hoje devemos
decididamente rejeitar que, do fato de ser criados à imagem de Deus e do
mandato de dominar a terra, se deduza um domínio absoluto sobre as outras
criaturas.” (n. 67).
A Igreja
nunca ensinou que o domínio do homem sobre a natureza e os animais fosse
absoluto, no sentido de que ele pudesse
fazer o que quisesse, sem levar em conta o fim último de todas as coisas.
Mas, ao dizer que antes se
interpretava “algumas vezes”
incorretamente as Escrituras, fica sugerido que a doutrina clássica do
domínio do homem sobre a natureza decorria de más interpretações no passado. Essa
ideia é reforçada adiante:
· “Hoje,
a Igreja não diz, de forma simplicista,
que as outras criaturas estão totalmente
subordinadas ao bem do ser humano, como se não tivessem um valor em si
mesmas e fosse possível dispor delas à nossa vontade...” (n. 69).
Segundo o
mesmo texto, existe uma “reciprocidade responsável entre o ser
humano e a natureza.” (n. 67). Como pode haver reciprocidade e
responsabilidade entre o “ser humano”
(racional) e a “natureza”
(irracional)?
Mais
adiante, a Encíclica também liga artificiosamente o “domínio”
com a “arbitrariedade”:
· “Mas
seria errado também pensar que os outros seres vivos devam ser considerados
como meros objetos submetidos ao domínio arbitrário do ser humano” (n.
82).
Em nenhum
lugar a Encíclica menciona o homem como rei da criação, mas insiste em
depô-lo dessa condição. Assim, no n. 68 (in
fine) afirma que “a Bíblia não dá
lugar a um antropocentrismo despótico, que se desinteressa das outras
criaturas.”
Em suma, a
Encíclica apresenta o homem não como o dominador da natureza, do mundo
sensível, o qual usa para dar glória a
Deus, mas praticamente inverte essa ordem e põe o homem não como dominador
mas como servidor da natureza sensível à
qual deve obedecer e submeter-se.
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