Nosso Divino Redentor — Morreu na Cruz, ressuscitou, subiu ao Céu, mas não cessou seu convívio com os homens
30 de março de 2015
Fonte: Revista Catolicismo, Nº 771 (Março/2015)
Reflexões propícias para a Semana Santa
Para se meditar durante a Semana Santa — que transcorrerá nos primeiros dias do próximo mês —,
Catolicismo oferece a seus leitores algumas considerações tecidas pelo Prof. Plinio Corrêa de Oliveira no ano de 1971, por ocasião de uma conferência para sócios e cooperadores da TFP a respeito dessa transcendente celebração litúrgica. Como é do conhecimento de muitos, o Prof. Plinio foi o principal colaborador desta revista desde a sua fundação, em 1951.
O insigne líder católico expõe especialmente sobre os pungentes fatos ocorridos durante a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo na Quinta e na Sexta-feira Santa.
Na Quinta-Feira, durante a Santa Ceia, Nosso Senhor instituiu a Sagrada Eucaristia e o Sacerdócio. Foi o modo divinamente ideado por Ele para perpetuar sua presença entre os homens.
Na Sexta-Feira Santa, o Divino Redentor sofreu no Horto das Oliveiras, em particular pela indiferença dos Apóstolos. E, no alto do Calvário, teve presente tudo o que se passaria com a humanidade até o fim dos tempos. Foi nessa ocasião que Ele nos concedeu misericordiosamente por mãe sua própria Mãe, para nos amparar nas dificuldades desta vida.
Esses são apenas alguns dos temas abordados pelo Prof. Plinio nessa memorável conferência, cujo texto segue, sem sua revisão. De nossa parte, apenas o transpusemos para a linguagem escrita e inserimos alguns subtítulos.
A Direção de Catolicismo
A Última Ceia – Juan de Juanes, séc. XVI. Museus El Prado, Madri (Espanha)
A renovação do Santo Sacrifício do Calvário
Plinio Corrêa de Oliveira
Conferência em 8-4-1971
Pensando na instituição da Sagrada Eucaristia na Santa Ceia, ocorreu-me a seguinte consideração.
Se uma pessoa assistisse à Crucifixão de Nosso Senhor Jesus Cristo e visse tudo o que se passou, se ela tivesse fé e soubesse que depois haveria a Ressurreição e a Ascensão ao Céu, poderia se perguntar: após a Ascensão, nunca mais Nosso Senhor retornaria ao convívio entre os homens? Até o fim do mundo Ele estaria ausente da Terra? Isso seria arquitetônico? É razoável essa ausência, uma vez que Ele fez pela humanidade tudo quanto realizou?
E a resposta que me ocorreu foi a seguinte: uma vez que Nosso Senhor imolou a sua vida daquele modo terrível; uma vez que Ele resgatou o gênero humano; uma vez que, pela Redenção, condescendeu em contrair com os homens que Ele salvou uma relação tão especial; uma vez que estabeleceu a Igreja como a cabeça do Corpo Místico, Ele estará continuamente presente na Terra até o fim do mundo. De maneira que Ele passou a ser a alma de nossa própria alma, o princípio motor de toda a nossa vida, no que ela tem de mais nobre e elevado, que é a vida sobrenatural, a vida espiritual.
Sendo assim, então nós deveríamos aceitar como verdadeiro que Ele subisse aos Céus, mas que a presença real d’Ele na Terra seria sentida.
À questão de que, de um lado tanta união, mas de outro tão completa, prolongada e irremediável separação, pode-se responder que tudo clamava, tudo bradava, tudo suplicava para que Nosso Senhor Jesus Cristo não se separasse dos homens.
E uma pessoa com senso arquitetônico deveria entrever que Nosso Senhor criaria um meio de estar sempre presente na Terra, sempre presente junto a cada um dos homens por Ele remidos. De modo tal que houvesse a Ascensão, mas que Ele, ao mesmo tempo, estivesse sempre no Céu no trono de glória que Lhe é devido, acompanhasse passo a passo a via dolorosa de cada homem aqui na Terra. Assim sendo, Ele estaria entre nós durante todas as dores da vida e até o momento extremo em que o homem dissesse por sua vez: “Consummatum est”.
Sagrada Eucarística — convívio verdadeiramente sublime
Como é que essa maravilha — a divina e permanente presença de Nosso Senhor Jesus Cristo — se faria? Não se poderia adivinhá-la. Mas os homens deveriam ficar sumamente esperançosos de que uma maravilha assim se realizasse. De tal maneira está nas mais altas conveniências da qualidade redentora de Nosso Salvador fazer por nós essa maravilha, que se deveria esperar por ela.
E creio que, se eu assistisse à Crucifixão e tivesse conhecimento da Ascensão ao Céu, ainda que não soubesse da existência da Eucaristia, eu começaria a procurar Jesus Cristo pela Terra, porque não conseguiria me convencer de que Ele tivesse deixado de conviver entre os homens.
Esse convívio verdadeiramente maravilhoso se realiza exatamente por meio da Eucaristia. Em todos os lugares da Terra, e em todos os momentos, Ele está presente. Está presente tanto nas catedrais opulentas como nas igrejinhas pobres. Quantas vezes, viajando por alguma estrada, encontramos umas capelinhas miseráveis, minúsculas, que dariam para acolher apenas uns vinte ou trinta camponeses habitando dispersos ao longo de enormes descampados. Passa-se por elas e fica-se comovido pensando: Nosso Senhor Jesus Cristo esteve, está ou estará realmente presente em Corpo, Sangue e Alma naquela capelinha. Presente com toda a glória do Tabor, com toda a sublimidade do Gólgota, presente com todo o esplendor da divindade nessa minúscula capela. De tal maneira Ele multiplicou pela Terra sua presença adorável.
Nosso Senhor sujeita-se às nossas boas ou más disposições
Um exemplo. Quando olhamos para as pessoas que encontramos numa igreja, podemos imaginar: este comunga, aquele comunga, aquele outro também comunga, digna ou indignamente. Nosso Senhor Jesus Cristo esteve ou estará presente naquelas pessoas. Talvez nesta semana, amanhã, ou hoje ainda, Ele estará presente neste ou naquele fiel.
Assim sendo, poderíamos pensar: ali está uma pessoa na qual Nosso Senhor esteve ou estará presente. Ela vai ser transformada, embora por minutos, num sacrário vivo.
Podemos medir bem a obra de misericórdia prodigiosa que foi concebida por Nosso Senhor com a instituição da Sagrada Eucaristia? Tanto quanto a presença d’Ele tem um valor infinito, tanto assim também tem valor infinito o fato de Ele estar presente de modo real sob as sagradas espécies por toda a Terra e em todos os homens que queiram condescender de O receber.
Convém imaginarmos as horas — muitas vezes prolongadas — em que Ele passa abandonado nos sacrários das igrejas, adorado apenas pelos anjos, pelos santos do Céu e por sua Mãe Santíssima. Os homens ausentes e distantes. Ele isolado no sacrário à espera de uma pessoa que tenha o desejo e O receber. De tal maneira o Infinito se sujeita ao que é finito! Aquele que é a própria pureza e a própria perfeição, sujeita-se às boas disposições daqueles que O querem receber. E o que é pior: sujeita-se por vezes às más disposições dos homens.
Missa por ocasião da fundação da Ordem dos Trinitários em 1660 – Juan Carreño, séc. XVII. Museu do Louvre, Paris (França)
Só mesmo um Deus poderia realizar o sacramento da Eucaristia
Por pouco que se pense nessas considerações, nossas almas não podem deixar de transbordar de reconhecimento, de enlevo, de gratidão por aquilo que Nosso Senhor operou na Santa Ceia. Só uma inteligência divina poderia excogitar a Sagrada Eucaristia e criar esse meio para estar presente em toda a parte e em todos os homens que O queiram receber na comunhão. Só mesmo um Deus poderia realizar isto.
Na Quinta-Feira Santa em que se instituiu esse milagre — a instituição do Sacramento eucarístico — por mais que essas verdades sejam conhecidas, é imperioso e obrigatório que detenhamos sobre elas nossa atenção. E que nós, por intermédio de Maria Santíssima, demos graças enormes a Deus pela instituição da Sagrada Eucaristia.
Só por intercessão de Nossa Senhora, como intermediária dessas graças? — Se é verdade que todo dom vindo do Céu para os homens é um dom que foi suplicado por Ela, é verdade que a Santa Mãe de Deus pediu a instituição da Sagrada Eucaristia a seu Filho. E, pelos rogos d’Ela, Nosso Senhor instituiu o sacramento eucarístico.
Portanto, é verdade que devemos agradecer a Sagrada Eucaristia também a Nossa Senhora. Agradecer a Ele que condescendeu em instituir a Eucaristia e a Ela que, movida pela graça, rogou a Deus esse favor transcendentalíssimo e o obteve para nós. É este pensamento que não pode deixar de estar presente nos nossos espíritos.
A renovação do sacrifício da cruz: a Santa Missa
Comunhão de São Luiz Gonzaga
Há um segundo pensamento, que também devemos ter presente. Ele está relacionado com a Santa Missa. A Eucaristia é, por assim dizer, um corolário da Missa. Bem sabemos que a transubstanciação se opera no próprio ato em que Nosso Senhor Jesus Cristo renova a sua Paixão. É a essência da Missa, que é a renovação incruenta da Paixão de Nosso Senhor. É o ato pelo qual o pão e o vinho se transformam em Corpo e Sangue de Jesus Cristo por meio das palavras sacramentais pronunciadas pelo sacerdote. Este ato, que é o oferecimento e a imolação, é também o ato determinante da presença real, que depois se conserva nas sagradas espécies.
Devemos pensar no valor infinito da renovação do sacrifício da cruz que se passa na Missa. O sacrifício da cruz tem de si um valor infinito. E cada vez que ele é oferecido por Nosso Senhor Jesus Cristo ao Padre Eterno, novamente se repete o sacrifício da cruz.
Uma pessoa que olhasse depois do “consummatum est” no alto do Calvário — após as santas mulheres e alguns discípulos receberem o divino Corpo a fim de prepararem seu sepultamento e presenciarem Nossa Senhora chorando sobre Ele — veria a Cruz isolada sobre o alto do Gólgota. Quando todos abandonaram o local, se apenas um homem ali ficasse solitário, com o espírito cheio de fé, compreenderia que aquela Cruz era o símbolo de um ato que haveria de se repetir e que, pela mesma lógica, convinha enormemente que se multiplicasse. Ato que, de fato, se multiplicou de um modo prodigioso por toda a Terra, o qual se repetiria até o fim do mundo.
Quinta-Feira Santa — a Missa, a Eucaristia e o sacerdócio
Há teólogos que afirmam que o Sacrifício da Missa tem um valor de tal maneira inapreciável e infinito, que se em um determinado dia o Santo Sacrifício da Missa deixasse de ser celebrado na Terra, a justiça de Deus se desfecharia sobre o mundo.
Uma pintura muito bonita representa a última Missa celebrada na Terra. Em meio do caos, um sacerdote reza a Missa. Neste momento, todos os anjos estão prontos para executar a vingança de Deus no fim do mundo. Todos estáticos, à espera de que a última Missa fosse celebrada. Tal é a reverência do próprio Deus para com o sacrifício no qual Ele mesmo é oferecido em holocausto, que nem a necessidade de castigar o mundo O faria precipitar a sua vingança antes de concluída aquela Missa.
Devemos considerar ainda que a Quinta-Feira Santa foi o dia da instituição do sacerdócio. O poder de consagrar foi conferido aos Apóstolos nessa ocasião. Três maravilhas, portanto, conexas entre si, às quais se deve acrescentar a cerimônia do “Lava-pés”. No mesmo dia em que Nosso Senhor, por assim dizer, encerra essa série de maravilhas.
Oração no Horto – Giovanni de Paolo, séc. XIV. Pinacoteca Vaticana
Quinta-Feira Santa — dia de júbilo e de tristeza
Entretanto, a Quinta-Feira Santa, o dia da Eucaristia, que deveria ser um dia de alegria, o dia da primeira Missa, é um dia de júbilo conjugado com tristeza. Tristeza por causa da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo que se aproxima, tristeza devido ao ódio satânico e bestial que fervia em torno do próprio salão no Cenáculo, onde Ele estava consumando a sua Obra. Tristeza por causa da tibieza e fraqueza dos Apóstolos, sendo eles, entretanto, os primeiros e os mais imediatos beneficiários de todas essas maravilhas mencionadas. Tristeza por causa do filho da perdição, Judas Iscariotes, que estava sentado entre os Apóstolos e que ia executar o crime nefando — o pior crime de toda História, que foi o de vender por trinta dinheiros o Homem-Deus.
Nosso Senhor Jesus Cristo, com a pré-ciência de todas as coisas que iriam acontecer, contudo, não trepidou em acumular tantas maravilhas sobre as pessoas desses pobres miseráveis, que, dentre em pouco, iriam fazer tudo quanto fizeram: dormiram e fugiram; e do traidor, infame por excelência, que consumou a traição.
Pedir a Nossa Senhora que nos trate como tratou os Apóstolos
Com essas reflexões, consideramos o que foi a vocação dos Apóstolos e o que representou a misericórdia da parte de Deus, que nada consegue abalar ou demover. Ele tinha o intuito de fazer daqueles Apóstolos os pilares de seu Reino. Ele tinha o desejo de construir o seu Reino sobre a Terra. De fato, Ele cumulou de dons esses Apóstolos. Eles foram infiéis, mas esses dons não se perderam. Eles acabaram sendo fiéis e as intenções e o plano do Redentor acabaram se realizando.
Assim, formamos uma ideia do que pode ser a misericórdia para aqueles a quem Nossa Senhora concedeu uma grande vocação. E dispomos de um argumento para nos estimular em meio a nossas incontáveis fraquezas. Também sobre seus filhos Maria Santíssima tem acumulado, mantidas as proporções, verdadeiras maravilhas.
Quantas razões para batermos no peito! Quantas razões para considerarmos, entre outras coisas, as nossas confissões apressadas, as nossas comunhões mecânicas, sem uma verdadeira piedade! Quantas razões para pensar em mil outras ocasiões!
Entretanto, Nossa Senhora continua a nos proteger, a nos ajudar, a nos conceder graças de toda ordem. Podemos esperar que Ela tenha a intenção misericordiosa de nos conservar para todo o sempre, para a criação de seu Reino sobre a Terra — o Reino de Maria como anunciado em Fátima e previsto por São Luis Grignion de Montfort —, apesar de todas as insuficiências, carências e infidelidades de seus filhos.
Com isso, devemos nos inclinar aos pés da Santíssima Virgem e pedir que nos trate como Ela tratou os Apóstolos e que nos obtenha análogo trato para nós por parte de Seu Divino Filho. Que Ela — fechando os olhos às nossas fraquezas e misérias passadas e presentes, e até mesmo àquelas que de futuro possamos cometer — queira não romper conosco esse pacto de misericórdia que desejou entabular. Que consinta em manter esse pacto e fazer chegar logo o dia mil vezes feliz em que Ela nos confirme na fidelidade, para que possamos afinal ser para Ela razão de uma alegria estável, permanente, durável, sólida e séria por nossa grande fidelidade.
Esta é a graça que na Quinta-Feira Santa especialmente devemos suplicar.
A tibieza dos Apóstolos no Horto das Oliveiras
Com essas considerações constatamos a maravilha do amor de Deus, mas também o horror da tibieza humana. Nosso Senhor, à medida que falava, ia se tornando mais bondoso, mais afetuoso ainda, como que derramando sua alma sobre os Apóstolos. E de tal maneira se ia revelando, que se tornou aos olhos de todos como uma figura toda luminosa, uma figura quase etérea. Dando assim a entender, ou a ver, a sua própria divindade.
Como é que os Apóstolos ouviam isso? — Com indiferença! Aquilo que maravilhou todos os séculos, para eles era nada. Estavam pensando, por exemplo, na popularidade deles na cidade, no triunfo da procissão da entrada no Domingo de Ramos que havia fracassado, e que não tinha atribuído a eles a importância terrena que desejavam. Portanto, atitude oposta às maravilhas que Nosso Senhor produzia em favor deles.
Como as analogias se repetem! Como muitas vezes se multiplicam as manifestações da bondade de Nosso Divino Redentor! Ele se torna cada vez mais diáfano e transparente para seus filhos. Mas, ao mesmo tempo, as pessoas pensam em coisas terrenas. Pensam no papel humano que desempenham suas miseráveis pessoinhas. E a partir do momento em que as almas adotam essa linha de pensamento, não há maravilhas que as comovam, não há milagres, não há manifestações da misericórdia de Deus que as sensibilizem, porque elas estão endurecidas. Endurecidas por quê? — Elas amam outra coisa. Que outra coisa elas amam? — Amam a si próprias, para representar um grande papel diante dos outros. É o orgulho, fonte da tibieza!
Um dos atos mais augustos e belos da história do Novo Testamento: Nosso Senhor vai tentando comover aquelas almas, falando-lhes cada vez com mais afeto. E na Santa Ceia é recebido por eles com a indiferença de que darão provas horas depois no Horto das Oliveiras. O Divino Salvador padecendo no Horto, enquanto os Apóstolos nem se lembram mais de todos os dons que lhes foram confiados. Eles dormiram! Queriam descansar! Não podiam vigiar uma hora junto ao Redentor, que, entretanto, pouco tempo antes lhes revelara a maravilha da Sagrada Eucaristia.
Até que ponto pode chegar a tibieza! A indiferença desdenhosa para com os dons de Deus, a tremenda dureza da alma, a preocupação exclusivamente consigo mesmo!
Fazer tudo para a maior glória de Deus
Santíssimo Sacramento – Jan Davidsz de Heem, séc. XVII. Kunsthistorisches Museum, Viena (Áustria).
Em consideração a essa série de ações maravilhosas que Nosso Senhor praticou na Quinta-Feira Santa, pode-se medir melhor com quanta veneração, com quanto respeito devemos nos aproximar do Santíssimo Sacramento.
Neste dia há Missa. Nela vai ser distribuída a Sagrada Comunhão em todas as igrejas católicas. Antes da hora da comunhão, procuremos reler o Evangelho na parte em que descreve a Santa Ceia. Procuremos pedir a Nossa Senhora que faça reacender em nossas almas todas as graças não recebidas nas comunhões anteriormente feitas sem o devido preparo. Roguemos à Santa Mãe de Deus o seguinte: que Ela obtenha que a comunhão no dia da Quinta-Feira Santa alcance todas as graças da melhor comunhão de nossa vida.
Sejamos ambiciosos e peçamos a Nossa Senhora que essa comunhão seja a melhor comunhão feita em nossa existência. Que, em memória desses fatos admiráveis, em memória da morte augustíssima de Seu Divino Filho, nossa comunhão seja a mais recolhida, a mais plena de veneração e ternura de toda a nossa vida. Melhor graça não se pode pedir.
A prova de que essa graça teria sido alcançada seria notar que depois tenhamos saído mais generosos, pensando menos em nós mesmos, menos nos pequenos interesses, nas vaidades, nos amores próprios. Mas desejando que o centro de tudo seja Nosso Senhor e sua Santíssima Mãe, seja a Santa Igreja Católica, instituída por Ele. Preocupando-se apenas com a maior glória de Deus, segundo o lema de Santo Inácio de Loyola: “Para a maior glória de Deus” — Ad majorem Dei gloriam.
Sexta-Feira Santa — em toda a Cristandade, imenso recolhimento
Calvário – Josse Lieferinxe, séc. XVI. Museu do Louvre, Paris (França)
Segundo tradições antigas que caracterizavam a Sexta-Feira Santa — eu ainda alcancei esse tempo —, a atmosfera era de um dia tão sagrado, de tal recolhimento, que se proibia nas ruas qualquer ruído. As locomotivas, o grande meio de transporte daquele tempo, emitiam os sinais sonoros apenas por instantes, em ocasiões estritamente indispensáveis para se evitar algum acidente. Os automóveis só buzinavam na medida indispensável. As pessoas andavam nas ruas vestidas de preto, falando em voz baixa, evitando manifestações de alegria. Se, por exemplo, dois conhecidos, ou duas famílias amigas, se encontrassem, evitavam estar sorrindo muito, evitavam certas manifestações ruidosas.
Dentro das próprias casas, as crianças não podiam rir, não podiam usar brinquedos que fizessem barulho. As pessoas passavam o dia inteiro mais ou menos em silêncio, apenas conversando sobre alguma coisa que não fosse muito profana.
Assim se lembrava da morte de Jesus Cristo, que, de algum modo, se repetia na Sexta-Feira Santa. Essa noção impregnava todo o ambiente. Em toda a Cristandade reinava um imenso recolhimento, um imenso retiro.
Mais ou menos às duas horas e meia da tarde, as famílias começavam a se dirigir para as igrejas, e as lotavam, para passarem a hora que Nosso Senhor Jesus Cristo expirou, dentro da igreja, junto a uma representação do sepulcro. Um padre fazia um sermão sobre a Agonia do Divino Salvador. Longos sermões de circunstância, em que se comentavam as sete palavras d´Ele no alto da Cruz.
E quando o pregador dizia afinal que o Redentor tinha expirado, ele e todo o povo se ajoelhavam, tocavam-se as matracas. Os sinos não se tocavam. Os altares permaneciam sem ornamentos, sem flores. A Terra inteira estava desolada pela lembrança da Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Era uma lembrança que se justificava inteiramente. Mas de fato não havia apenas uma recordação da Paixão de Jesus Cristo. Para cada festa litúrgica há uma graça especial que a Igreja concede. Todas as graças especialíssimas da morte infinitamente preciosa d´Ele se expandiam pela Igreja, com uma generosidade particular, para despertar nos fiéis as disposições de alma que eles deveriam manifestar se estivessem no Calvário, no momento em que Nosso Senhor expirou.
O desejo era que todos revivessem a cena do Calvário. E tivessem a propósito da Paixão exatamente as disposições de alma que deveriam exprimir se lá estivessem. A ideia era a de associar, por essa forma, a Cristandade, em todos os séculos, ao sofrimento de Nosso Senhor.
Nosso Divino Salvador do alto da Cruz via tudo quanto se passava. Mas não só o que ocorria ali no Calvário, e que Ele sabia por um conhecimento humano, mas também por ciência revelada e divina. Ele via tudo o que se passaria ao longo dos séculos. Por exemplo, Ele observava não apenas todos os crimes, os sacrilégios contra a Eucaristia que seriam cometidos, mas também todas as práticas de adoração que seriam realizadas, todo o amor que Lhe seria dedicado, em razão do ato que Ele naquele momento estava consumando. Ele contemplava, em todos os séculos, todos os povos da Terra que O adorariam.