TEL AVIV. “Damasco, Lawrence, Damasco!”, grita o entusiasmado xerife de Meca, Hussein Bin Ali, para o soldado britânico T.E. Lawrence minutos antes da conquista da capital síria por milicianos árabes em 1917. A façanha, reproduzida no filme “Lawrence da Arábia” (1962), levou o poderoso exército britânico a encarar com seriedade a revolta árabe contra o controle do Império Turco-Otomano, aliado dos alemães durante a Primeira Guerra Mundial. Afinal, a Síria, o mesmo país que hoje enfrenta uma sangrenta guerra civil e a possibilidade de intervenção militar americana, era o suprassumo do Oriente Médio. Conquistar Damasco - uma das cidades mais antigas do mundo, espécie de ponte entre Ocidente e Oriente - seria fundamental para virar o jogo que levou à vitória aliada, em 1918.
Mas o mitológico Lawrence não comemorou a conquista de Damasco, que ajudou a liderar. Decepcionado, ela sabia que britânicos e franceses planejavam trair os árabes depois da guerra, dividindo o Oriente Médio entre eles, sem cumprir a promessa de criar um país árabe independente em troca do apoio contra os turco-otomanos. Lawrence estava certo: em 1915, França e Grã-Bretanha já haviam rabiscado o chamado Acordo Sykes-Picot, criando arbitrariamente - com ajuda apenas de réguas e compassos sobre um mapa - áreas sob dominação dos dois países (na prática, Síria e Líbano ficaram para os franceses e Iraque e Palestina, para os ingleses).
No caso da Síria, a divisão, que não levou em consideração o complicado e milenar mosaico regional de etnias e religiões, é vista por muitos como base dos conflitos sectários que corroem o país hoje. Mais do que a maioria dos países árabes, a população da moderna Síria, que se tornou independente dos franceses em 1946, é uma frágil teia de comunidades étnicas e sectárias. Dos 23 milhões de sírios, 90% são árabes, mas também há curdos (9%) e pequenas comunidades armênias, circassianas e turcomanas. Em termos de religião, a subdivisão é mais complicada: 74% dos sírios são muçulmanos sunitas, 16% são muçulmanos xiitas (entre alauitas, drusos e ismaelitas) e 10%, cristãos (ortodoxos, maronitas ou latinos). Junta-se a isso outra subdivisão, a dos clãs familiares, e se tem uma receita para desavenças.
“Essas divisões e conflitos étnicos e sectários vêm por séculos sendo fontes de considerável tensão social na Síria. Pela maior parte do século XX, esses antagonismos foram reforçados pela tradicional dominação econômica dos sunitas nas maiores cidades e pelas percepções a muçulmanos não-sunitas, encarados como heréticos; e acristãos, vistos como colaboradores dos não-sunitas”, explica o historiador Flynt Leverett no livro “Herdando a Síria: o batismo de fogo de Bashar”. “Nesse clima de antagonismo, seria virtualmente impossível para a entidade que emergiu como a Estado-nação da Síria em 1946 se integrar com sucesso ou forjar um comunidade política coesa.”
Terras férteis em disputa
Para entender essa miríade de identidades que convivem em só país, é preciso voltar milhares de ano na História. As primeiras cidades surgiram na região do chamado Crescente Fértil por volta de 10.000 a.C. Todas as grandes civilizações antigas, de sumérios a egípcios, passando por hititas, babilônios, fenícios e persas, lutaram pelas terras férteis e estratégicas, bem no encontro entre Ásia, África e Europa. Em 333 a.C., foi a vez do rei macedônio Alexandre, o Grande, conquistar o território. Dos gregos surgiu a palavra “Síria”, que, na época, incluía a atual Síria, Líbano, Israel, Cisjordânia e Faixa de Gaza, Jordânia e partes da Turquia e do Iraque.
Mas a dominação estrangeira não parou por aí. Em 64 a.C. os romanos se tornaram senhores da Síria. A região seria crucial para o desenvolvimento do cristianismo. Foi no caminho para Damasco que o turco Saulo de Tarso teve uma visão e se transformou no apóstolo Paulo. No século IV, o cristianismo se tornou a religião oficial do Império Romano e a Síria passou a ser o centro do mundo cristão. Outra grande mudança, no entanto, balançou os sírios no século VII: a conquista muçulmana em 634 d.C. Damasco passou, de coração do cristianismo, para coração do império islâmico.
Pouco depois, começaram as picuinhas internas dentro do próprio Islã - divisões fundamentais para entender o atual conflito sírio. Os muçulmanos se dividiram em sunitas e xiitas, divergindo sobre a sucessão do Profeta Maomé depois de sua morte. A rixa, que dura até hoje, levou a uma época de caos na Síria. O enfraquecimento interno levou à conquista pelos abássidas, em 750 d.C, quando a capital do império islâmico foi transferida para Bagdá. Seguiu-se a esse baque longos períodos de anarquia e mais conquistas estrangeiras (bizantinos e turcos selêucidas, entre outros). Sem contar as Cruzadas (partes da Síria se tornaram “Estados cruzados” entre os séculos XII e XIII). Com o fim da presença cristã europeia, passaram pela região estratégica mongóis, turco-otomanos e, finalmente, franceses.
Sem tato quanto a milênios de História, que espalharam comunidades distintas e antagônicas na Síria, os franceses, depois da Primeira Guerra, dividiram o país em três regiões autônomas, com áreas específicas para alauitas e drusos. Fora isso, separaram uma parte costeira para a criação do Líbano. Revoltada, a população local, que chamava a dominação francesa de “estupro”, ensaiou uma revolta em 1925, suprimida violentamente dois anos depois. Os franceses só deixaram a Síria depois da Segunda Guerra Mundial. Em 17 de abril 1946, o país finalmente proclamou sua independência. Mas as divisões internas nunca acabaram.
Nem a era republicana levou à calmaria. A política interna síria foi marcada por revoltas e conflitos. Para se ter uma ideia, entre 1946 e 1956, a Síria teve 20 governos diferentes e quatro esboços de constituição. A fracassada guerra de 1948 contra a criação de Israel não ajudou a estabilizar o país. Só em 1949, houve três golpes de estado. Nos anos 50, a Guerra Fria levou a um período de influência comunista, juntamente com um aumento da influência do movimento pan-arabista do presidente egípcio Gamal Abdel Nasser - que pregava uma união entre países árabes. Em 1958, Síria e Egito chegaram a anunciar a criação da República Árabe Unida (RAU), mas a iniciativa durou apenas três anos.
A essa altura, cansados da instabilidade política, muitos sírios aceitaram a ditadura de Hafez al-Assad, até mesmo a maioria sunita. Realmente, por 30 anos, houve estabilidade política, o que ajudou num certo florescimento econômico. Mas, junto com a estabilidade, veio a repressão violenta. Com Bashar al-Assad, que assumiu o cargo em 2000, não foi diferente. E analistas do centro de pesquisas alertam para uma piora na situação com uma eventual queda do regime. Os rebeldes do Exercito Livre Sírio, a maior força de oposição, são divididos num sem número de facções. As disputas devem ainda continuar por muitos anos.
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