10 de diciembre de 2013
Entrevista papal retirada do site vaticano Arnaldo Xavier da Silveira
Entrevista papal retirada do site vaticano
Arnaldo
Xavier da Silveira
Publicado también en UNA VOX, http://www.unavox.it/ArtDiversi/DIV684_Da-Silveira_Intervista_rimossa.html
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1] Os debates
sobre as entrevistas concedidas recentemente pelo Papa Francisco ao Diretor da
Civiltà Cattolica e ao fundador do jornal romano La Repubblica tomaram, em
meados de novembro, um caminho surpreendente. No dizer do professor e
jornalista italiano Antonio Socci, “attorno a quell’intervista è nato il
primo, vero problema del pontificato di Francesco. Anzi, un dramma” ([i]). Com o coração dilacerado, o católico fiel verifica que uma observação
serena dos fatos mostra que falar em “drama”, no caso, não é
sensacionalismo de jornalista.
Crise
dramática
2] As duas
mencionadas entrevistas papais, divulgadas amplamente pela imprensa
internacional em setembro e outubro últimos, provocaram reações vigorosas de
numerosos setores católicos antimodernistas de todo o orbe, porque ali o Papa
adotava posicionamentos aberrantes da doutrina tradicional. As manifestações
nesse sentido vinham num crescendo inaudito, e em termos inesperados, por
partirem sobretudo dos analistas e autores mais apegados ao Papado e à Tradição.
Destes vieram respeitosas mas públicas e veementes observações quanto à
ortodoxia daqueles posicionamentos.
3] Na
política civil é frequente e até corriqueiro que uma autoridade pressionada por
setores de peso da sociedade se veja forçada a explicar-se. Assim também,
estava se tornando estranho o silêncio do Papa. O sabor amargo de suas duas
entrevistas pedia um esclarecimento, dele pessoalmente ou talvez da Cúria, que
fosse visto como uma resposta tranquilizadora para seus filhos mais fieis.
4] Eis que na
sexta-feira, 15 de novembro, o porta-voz do Vaticano, Pe. Federico Lombardi,
anuncia à imprensa que, por ordem da Secretaria de Estado de Sua Santidade, a
entrevista aoLa Repubblica estava sendo retirada do site da Santa Sé. Os fatos
foram noticiados no próprio dia 15, conforme se lê no site Vatican Insider sob
o título «Il testo non era stato rivisto parola per parola», nos termos
seguintes:
“La Santa Sede ha deciso
di cancellare dal sito web vaticano (www.vatican.va) il testo
del colloquio tra Papa Francesco e il fondatore di «Repubblica» Eugenio
Scalfari. Francesco aveva ricevuto Scalfari venuto a ringraziarlo per la
lettera aperta ricevuta e pubblicata sul quotidiano.
“Alle domande
dei giornalisti sul perché di questa decisione, il portavoce della Santa
Sede, padre Federico Lombardi, ha risposto: «L'intervista è attendibile in
senso generale, ma non nelle singole valutazioni: per questo si è
ritenuto di non farne un testo consultabile sul sito della Santa Sede. In
sostanza, togliendola si è fatta una messa a punto della natura di quel testo.
C'era qualche equivoco e dibattito sul suo valore. Lo ha deciso la Segreteria
di Stato».
“Padre
Lombardi fin dai giorni successivi alla pubblicazione dell'intervista aveva
dichiarato che il Papa non aveva rivisto personalmente il testo, che pure
Scalfari aveva inviato in Vaticano. In effetti l'articolo conteneva espressioni
difficilmente attribuibili a Papa Francesco. Nonché un errore riguardante quanto
accaduto nella Sistina. In una delle risposte, si diceva che il Pontefice dopo
aver raggiunto il quorum necessario per l'elezione, prima di accettare si
sarebbe ritirato in preghiera. Circostanza non vera, e smentita da diversi
cardinali, tra i quali l'arcivescovo di New York Timothy Dolan.
“Molte polemiche e discussioni aveva
provocato anche un'affermazione - peraltro del tutto compatibile con il
Catechismo della Chiesa Cattolica - riguardante il primato della coscienza.
Lombardi ha comunque smentito che la decisione di togliere l'intervista
dal sito sia stata presa su richiesta del Prefetto dell'ex Sant'Uffizio,
Gerhard Ludwig Müller” ([ii]).
5] Dispensamo-nos
de uma análise circunstanciada dessas declarações, em vista das incongruências
que apresentam, e da debilidade insanável de sua fundamentação. Fazemos uma
única e rápida observação. O Pe. Lombardi indica como uma das razões da
retirada da entrevista do site, os ditos papais sobre o primado da consciência,
que provocaram polêmicas e discussões; e, para justificar o texto pontifício,
acrescenta ser este em tudo compatível com o Catecismo da Igreja Católica. Ora,
essa consideração, de si, não elimina a reserva, uma vez que, na passagem em
questão, esse Catecismo é conflitante com a doutrina tradicional, do mesmo
modo que o é a Dignitatis Humanae do Vaticano II, no qual ele se inspira e que deve ser qualificado como
heretizante (ver, neste site, o artigo “Da qualificação teológica extrínseca
do Vaticano II”).
6] Outrossim,
as singulares declarações do Pe. Lombardi suscitam dúvidas e questões variadas,
como por exemplo as que seguem. ─ Por que retirar o texto do site sem explicar
em que pontos precisos ele não fora fiel ao pensamento do Papa? Por que retirar
do site só a entrevista a La Repubblica, ali deixando a da Civiltà
Cattolica, que revela idêntica orientação teológica?
Desqualificar dessa forma, indiretamente, o texto de La Repubblica como documento
magisterial, não seria fugir às graves acusações formuladas pelos
antimodernistas de todo o mundo, em vez de enfrentá-las serenamente e às
claras, como seria de rigor para o mestre e intérprete infalível da verdade
revelada? Bem sopesada a exclusão dessa entrevista do site da Santa Sé, não se
poderia concluir, em boa e singela lógica, que realmente seu texto estava
prenhe de proposições desviadas da boa doutrina? E, enfim: por mais que os
fieis verdadeiros cultuem filialmente o Papa e o Papado, à luz da Fé; por mais
que tenham o Pontífice como “o doce Cristo na Terra”; e por mais que lamentem
de toda a alma a dramática situação presente, seriam eles insanae mentis a
ponto de pensarem que a questão da ortodoxia das duas aludidas entrevistas
estaria encerrada com a retirada de uma delas do site vaticano?
Expressões
inaceitáveis na entrevista à Civiltà Cattolica
7] Nas
declarações do Papa a La Repubblica estão algumas das frases papais que correram mundo atordoando os
católicos fieis, tais como: “o proselitismo é um solene disparate”; “cada
um tem sua ideia do Bem e do Mal e deve escolher de seguir o Bem e combater o
Mal como ele os concebe”; “os cabeças da Igreja com frequência foram
narcisistas, adulados e mal instigados por seus cortesãos”; “a corte é a
lepra do Papado”; “muitos da teologia da libertação eram crentes e com
um alto conceito de humanidade”; “não existe um Deus católico, existe
Deus”. ─ Tudo isso, portanto, foi agora retirado do site vaticano.
8] Contudo, ingênuo seria o fiel católico para quem
a questão de fundo estaria resolvida com a simples retirada do texto de La Repubblica do site
vaticano. Com efeito, na entrevista à Civiltà Cattolica, que
permanece no site, o Papa disse:
a. Que um de seus pensadores contemporâneos preferidos é Henri de Lubac. ─ Tal
asserção constitui uma recomendação implícita mas incisiva para que o
neomodernista Cardeal Henri de Lubac seja estudado e seguido pelos católicos
fieis, como já observamos anteriormente (ver, neste site, o artigo “Grave
lapso teológico do Padre Federico Lombardi”).
b. “Non sono mai stato di destra”. ─ Também já
observamos, no mesmo artigo, que essa expressão claramente convida os fieis a
adotarem um posicionamento antes de esquerda.
c. “Dio è più grande del peccato”. ─ Essa frase
insinua que o pecado não é tão grave, desde que se creia em Deus e em sua
misericórdia.
d. “Durante il volo di ritorno da Rio de Janeiro ho detto che, se una
persona omosessuale è di buona volontà ed è in cerca di Dio, io non sono
nessuno per giudicarla.”. ─ É evidente que não cabe ao Papa julgar o íntimo
da consciência individual – de internis nec Ecclesia –, mas é missão essencial
ao representante de Jesus Cristo na Terra expor a doutrina da Igreja sobre fé e
moral. A esse propósito, é estarrecedora a notícia de que o casamento
homossexual foi aprovado, no Estado americano de Illinois, graças às instâncias
de um deputado católico, Michael J. Madigan, que conseguiu obter a pequena
dezena de votos necessária para que a nova lei fosse aprovada com o argumento
de que, se o Papa dizia “eu não sou ninguém para julgá-la”, menos ainda o
poderia ele.
e. “La religione ha il diritto di esprimere la propria opinione a servizio
della gente, ma Dio nella creazione ci ha resi liberi: l’ingerenza spirituale
nella vita personale non è possibile”. ─ Nos pontos
fundamentais do dogma e da moral, a doutrina católica não tem “opiniões”
mas certezas. O apostolado, a formação doutrinária, o aconselhamento na direção
espiritual não podem ser considerados “ingerência” na “vida pessoal”
de ninguém. Nos documentos pontifícios anteriores ao Vaticano II, como a
Encíclica Libertas Praestantissimum, de Leão XIII, e nos manuais da
neo-escolástica, a verdadeira noção da liberdade vem exposta de modo claro, sem
relativizações.
f. “Non possiamo insistere solo sulle questioni legate ad aborto,
matrimonio omosessuale e uso dei metodi contraccettivi. Questo non è
possibile”. ─ Essa frase vem evidentemente desestimular as magníficas campanhas que
têm sido promovidas em todo o orbe contra aqueles flagelos. É grave que essa
intervenção papal se dê exatamente quando do auge de algumas dessas companhas.
g. “Il parere della Chiesa, del resto, lo si conosce, e io sono figlio della
Chiesa, ma non è necessario parlarne in continuazione”.. ─ É igualmente estarrecedor que a posição da Igreja sobre esses pontos
fundamentais da moral seja qualificada como simples “parere”. E não se
vê que o texto dê a devida atenção ao dever enunciado por São Paulo, de “insistir
oportuna e importunamente”.
h. “Una pastorale missionaria non è ossessionata dalla trasmissione
disarticolata di una moltitudine di dottrine da imporre con insistenza”. ─ Essa
afirmação constitui grave condenação da neo-escolástica, como anotamos no
mencionado artigo “Grave lapso teológico do Padre Federico Lombardi”.
i. “L’annuncio dell’amore salvifico di Dio è previo all’obbligazione
morale e religiosa”.. ─ O que fica insinuado nessa frase não é tanto a antecedência temporal
do “annuncio dell’amore salvifico di Dio” em relação às obrigações
morais e religiosas, mas é sobretudo a ideia modernista de que realmente
importante é o amor de Deus, ao passo que as obrigações morais e religiosas são
relativas, podendo até variar segundo a consciência de cada qual.
j. “I dicasteri romani (…) quando non sono bene intesi, invece, corrono
il rischio di diventare organismi di censura. È impressionante vedere le
denunce di mancanza di ortodossia che arrivano a Roma”. ─ Essa
declaração revela, de um lado, o zelo dos fieis católicos, que os leva a batalhar
pela pureza da Fé. E, de outro lado, que seu autor parece adotar a norma
liberal do “politicamente correto” de nossos dias, segundo a qual toda
censura é má. A santa Igreja sempre ensinou que, em princípio, a censura é
indispensável à preservação da Fé.
k. “Non è stata fatta ancora una profonda teologia della donna [...] Quale
deve essere il ruolo della donna nella Chiesa?”. ─ Como já nos
perguntamos no mesmo artigo “Grave lapso teológico do Padre Federico
Lombardi”, não é verdade que tal afirmação sugere uma modernização do papel
da mulher na Igreja, favorecendo em tese a posição dos que querem até a
ordenação sacerdotal de mulheres?
l. “Considero invece preoccupante il rischio di ideologizzazione del
Vetus Ordo, la sua strumentalizzazione”. ─ Para o bom
entendedor, essa frase manifesta o fundo do pensamento do Papa Francisco sobre
a Missa tradicional. Não se vê que seja possível pôr á margem, com uma simples
palavra ligeira, os graves problemas de Fé, e portanto de consciência, que a
Missa nova suscita.
m. “Dio è reale se si manifesta nell’oggi. [...] Dio si manifesta in una
rivelazione storica, nel tempo. Il tempo inizia i processi, lo spazio li
cristallizza. Dio si trova nel tempo, nei processi in corso.” ─ Essa
formulação induz à tese modernista de que a Revelação não terminou com a morte
do último dos Apóstolos, tese essa que, por sua vez, leva à evolução intrínseca
do dogma.
n. “in questo cercare e trovare Dio in tutte le cose resta sempre una zona
di incertezza. Deve esserci. Se una persona dice che ha incontrato
Dio con certezza totale e non è sfiorata da un margine di
incertezza, allora non va bene. Per me questa è una chiave importante.” ─ Está aí,
pelo menos insinuada, a profissão de uma Fé que admite incertezas.
o. “non dobbiamo confondere
la genialità del tomismo con il tomismo decadente. Io, purtroppo, ho studiato la
filosofia con manuali di tomismo decadente”.. ─ Para quem tem uma noção da história do tomismo,
ainda que sumária, essa declaração constitui uma condenação genérica e total da
magnífica neo-escolástica dos séculos XIX e XX.
9] Diante
dessas passagens da Civiltà Cattolica, vê-se que, quanto ao
mérito, nada ou pouco significa a retirada da entrevista de La Repubblica do site
vaticano. E vê-se também como é precária a afirmação do Pe. Lombardi de
que o texto supresso teria “equívocos”, por isso não exprimindo com exatidão o
pensamento papal. Equívocos, quando realmente existem, são por natureza
ocasionais, circunstanciais, aleatórios, de modo tal que, se numerosos deles,
num texto longo, caminham todos na mesma direção, como é aqui o caso, não se
haveria de falar em “equívocos”, mas em algo de bem diverso.
Está se
perdendo a “italianità” tradicional da Santa Sé
10] Há
séculos a Santa Sé tem seus modos de proceder profundamente marcados pelo
espírito italiano. De forma muito especial, esse estilo peninsular se revela na
diplomacia clássica do Vaticano, sábia, silenciosa, sóbria, altamente
eficiente. Esse modo de ser e agir traz em si um savoir faire extraordinário,
que sabe harmonizar as virtudes entre si opostas, como a justiça e a
misericórdia, a magnificência e o espírito de pobreza. Sabe distinguir,
compreende que a verdade está nas nuances. É uma escola de seriedade, de
humildade, de organicidade, de habilidade, do senso das conveniências e
medidas. No passado, grandes figuras estrangeiras, como o Cardeal Merry del
Val, Secretário de Estado de São Pio X, souberam assimilar em si e no seu
proceder esse magnífico espírito italiano. Em teologia, o mesmo ocorreu com o
alemão Cardeal Franzelin, com o francês Cardeal Billot e com tantas outras
personalidades insignes.
11]
Infelizmente, a internacionalização do Colégio cardinalício e da Cúria romana
nem sempre está mantendo em sua integridade e pureza os valores dessa
“italianità” multissecular. Assim, despontam cá e lá, em espíritos das mais
diversas nacionalidades, manifestações do “esto pro lege voluntas”, bem como de
certa espontaneidade vistosa e pouco refletida, erigida por alguns como norma
básica da vida social. Veja-se, por exemplo, nesse episódio das duas
entrevistas papais, como desde o início a questão foi mal encaminhada, com
ofensas a verdades da Fé e tradições curiais, podendo-se recear que se tenha
tornado inevitável, em futuro próximo, a eclosão de uma crise mais pesada.
12] Com muita
razão, o ilustre professor Pietro De Marco escreveu, a propósito da crise
provocada pelas duas aludidas entrevistas do Papa Francisco, que, ”para quem
não seja propenso à prosa relativista desta modernidade tardia”, um dos “sinais
preocupantes” da situação de hoje é “a falta de controle, por pessoas de
confiança, mas sábias e cultas, e italianas, dos textos destinados à
circulação, talvez pelo convencimento papal de que isso não é necessário” ([iii]).
Breve
esclarecimento e conclusão
13] A fim de
evitar mal-entendidos, deixo claro que a italianità de que falo – sóbria,
lúcida, ágil, orgânica, católica – talvez seja hoje rara, nos meios vaticanos
como na Itália em geral. E, ademais, caberia perguntar se tal italianità
autêntica é conciliável com o modernismo, o qual, negando a verdade objetiva
(ver, neste site, Garrigou-Lagrange, citado em meu artigo “Sentir com a Igreja
é sentir com o Vaticano II ?”), não pode exprimir-se convenientemente na lógica
aristotélica, à luz dos primeiros princípios da escolástica, de maneira
racional, séria, clara e transparente.
14] Que Nossa
Senhora do Divino Amor, padroeira da cidade de Roma, conceda suas melhores
graças ao Papa Francisco, bem como preserve a autêntica italianità na vida
vaticana, e faça com que sem delongas seja o modernismo extirpado dos meios
católicos, como o há necessariamente de ser, dado o dogma da indefectibilidade
da santa Igreja, em que todos cremos com Fé verdeira, que inadmite dúvida.
[i]
Artigo pubicado no blog do autor, Lo Straniero, em 16.11.13,
- http://www.antoniosocci.com/2013/11/il-vaticano-mette-fine-agli-equivoci-cancellata-l-intervista-di-scalfari/ ,
[ii] Notícia do Vatican Insider - http://vaticaninsider.lastampa.it/vaticano/dettaglio-articolo/articolo/francesco-francis-francisco-29755/
[iii] Artigo “Un messagio ‘liquido’”, http://chiesa.espresso.repubblica.it/articolo/1350619 ─ Pietro De
Marco, historiador e sociólogo, é professor na Faculdade de Florença e na
Faculdade de Teologia da Itália Central.
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