10 de diciembre de 2013

Entrevista papal retirada do site vaticano Arnaldo Xavier da Silveira

Entrevista papal retirada do site vaticano


Arnaldo Xavier da Silveira

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1] Os debates sobre as entrevistas concedidas recentemente pelo Papa Francisco ao Diretor da Civiltà Cattolica e ao fundador do jornal romano La Repubblica tomaram, em meados de novembro, um caminho surpreendente. No dizer do professor e jornalista italiano Antonio Socci, “attorno a quell’intervista è nato il primo, vero problema del pontificato di Francesco. Anzi, un dramma ([i]). Com o coração dilacerado, o católico fiel verifica que uma observação serena dos fatos mostra que falar em “drama”, no caso, não é sensacionalismo de jornalista.

Crise dramática

2] As duas mencionadas entrevistas papais, divulgadas amplamente pela imprensa internacional em setembro e outubro últimos, provocaram reações vigorosas de numerosos setores católicos antimodernistas de todo o orbe, porque ali o Papa adotava posicionamentos aberrantes da doutrina tradicional. As manifestações nesse sentido vinham num crescendo inaudito, e em termos inesperados, por partirem sobretudo dos analistas e autores mais apegados ao Papado e à Tradição. Destes vieram respeitosas mas públicas e veementes observações quanto à ortodoxia daqueles posicionamentos.

3] Na política civil é frequente e até corriqueiro que uma autoridade pressionada por setores de peso da sociedade se veja forçada a explicar-se. Assim também, estava se tornando estranho o silêncio do Papa. O sabor amargo de suas duas entrevistas pedia um esclarecimento, dele pessoalmente ou talvez da Cúria, que fosse visto como uma resposta tranquilizadora para seus filhos mais fieis.

4] Eis que na sexta-feira, 15 de novembro, o porta-voz do Vaticano, Pe. Federico Lombardi, anuncia à imprensa que, por ordem da Secretaria de Estado de Sua Santidade, a entrevista aoLa Repubblica estava sendo retirada do site da Santa Sé. Os fatos foram noticiados no próprio dia 15, conforme se lê no site Vatican Insider sob o título «Il testo non era stato rivisto parola per parola», nos termos seguintes:

La Santa Sede ha deciso di cancellare dal sito web vaticano (www.vatican.va) il testo del colloquio tra Papa Francesco e il fondatore di «Repubblica» Eugenio Scalfari. Francesco aveva ricevuto Scalfari venuto a ringraziarlo per la lettera aperta ricevuta e pubblicata sul quotidiano.
“Alle domande dei giornalisti sul perché di questa  decisione, il portavoce della Santa Sede, padre Federico Lombardi, ha risposto: «L'intervista è attendibile in senso generale, ma non nelle  singole valutazioni: per questo si è ritenuto di non farne un testo consultabile sul sito della Santa Sede. In sostanza, togliendola si è fatta una messa a punto della natura di quel testo. C'era qualche equivoco e dibattito sul suo valore. Lo ha deciso la Segreteria di  Stato».
“Padre Lombardi fin dai giorni successivi alla pubblicazione dell'intervista aveva dichiarato che il Papa non aveva rivisto personalmente il testo, che pure Scalfari aveva inviato in Vaticano. In effetti l'articolo conteneva espressioni difficilmente attribuibili a Papa Francesco. Nonché un errore riguardante quanto accaduto nella Sistina. In una delle risposte, si diceva che il Pontefice dopo aver raggiunto il quorum necessario per l'elezione, prima di accettare si sarebbe ritirato in preghiera. Circostanza non vera, e smentita da diversi cardinali, tra i quali l'arcivescovo di New York Timothy Dolan.
“Molte polemiche e discussioni aveva provocato anche un'affermazione -  peraltro del tutto compatibile con il Catechismo della Chiesa Cattolica - riguardante il primato della coscienza. Lombardi ha comunque  smentito che la decisione di togliere l'intervista dal sito sia stata  presa su richiesta del Prefetto dell'ex Sant'Uffizio, Gerhard  Ludwig Müller ([ii]).

5] Dispensamo-nos de uma análise circunstanciada dessas declarações, em vista das incongruências que apresentam, e da debilidade insanável de sua fundamentação. Fazemos uma única e rápida observação. O Pe. Lombardi indica como uma das razões da retirada da entrevista do site, os ditos papais sobre o primado da consciência, que provocaram polêmicas e discussões; e, para justificar o texto pontifício, acrescenta ser este em tudo compatível com o Catecismo da Igreja Católica. Ora, essa consideração, de si, não elimina a reserva, uma vez que, na passagem em questão, esse Catecismo é conflitante com a doutrina tradicional, do mesmo modo que o é a Dignitatis Humanae do Vaticano II, no qual ele se inspira e que deve ser qualificado como heretizante (ver, neste site, o artigo “Da qualificação teológica extrínseca do Vaticano II”).

6] Outrossim, as singulares declarações do Pe. Lombardi suscitam dúvidas e questões variadas, como por exemplo as que seguem. ─ Por que retirar o texto do site sem explicar em que pontos precisos ele não fora fiel ao pensamento do Papa? Por que retirar do site só a entrevista a La Repubblica, ali deixando a da Civiltà Cattolica, que revela idêntica orientação teológica? Desqualificar dessa forma, indiretamente, o texto de La Repubblica como documento magisterial, não seria fugir às graves acusações formuladas pelos antimodernistas de todo o mundo, em vez de enfrentá-las serenamente e às claras, como seria de rigor para o mestre e intérprete infalível da verdade revelada? Bem sopesada a exclusão dessa entrevista do site da Santa Sé, não se poderia concluir, em boa e singela lógica, que realmente seu texto estava prenhe de proposições desviadas da boa doutrina? E, enfim: por mais que os fieis verdadeiros cultuem filialmente o Papa e o Papado, à luz da Fé; por mais que tenham o Pontífice como “o doce Cristo na Terra”; e por mais que lamentem de toda a alma a dramática situação presente, seriam eles insanae mentis a ponto de pensarem que a questão da ortodoxia das duas aludidas entrevistas estaria encerrada com a retirada de uma delas do site vaticano?

Expressões inaceitáveis na entrevista à Civiltà Cattolica

7] Nas declarações do Papa a La Repubblica estão algumas das frases papais que correram mundo atordoando os católicos fieis, tais como: “o proselitismo é um solene disparate”; “cada um tem sua ideia do Bem e do Mal e deve escolher de seguir o Bem e combater o Mal como ele os concebe”; “os cabeças da Igreja com frequência foram narcisistas, adulados e mal instigados por seus cortesãos”; “a corte é a lepra do Papado”; “muitos da teologia da libertação eram crentes e com um alto conceito de humanidade”; “não existe um Deus católico, existe Deus”. ─ Tudo isso, portanto, foi agora retirado do site vaticano.

8] Contudo, ingênuo seria o fiel católico para quem a questão de fundo estaria resolvida com a simples retirada do texto de La Repubblica do site vaticano. Com efeito, na entrevista à Civiltà Cattolica, que permanece no site, o Papa disse:
a. Que um de seus pensadores contemporâneos preferidos é Henri de Lubac. ─ Tal asserção constitui uma recomendação implícita mas incisiva para que o neomodernista Cardeal Henri de Lubac seja estudado e seguido pelos católicos fieis, como já observamos anteriormente (ver, neste site, o artigo “Grave lapso teológico do Padre Federico Lombardi”).
b. Non sono mai stato di destra”. ─ Também já observamos, no mesmo artigo, que essa expressão claramente convida os fieis a adotarem um posicionamento antes de esquerda.
c.   Dio è più grande del peccato”. ─ Essa frase insinua que o pecado não é tão grave, desde que se creia em Deus e em sua misericórdia.
d. Durante il volo di ritorno da Rio de Janeiro ho detto che, se una persona omosessuale è di buona volontà ed è in cerca di Dio, io non sono nessuno per giudicarla.”. ─ É evidente que não cabe ao Papa julgar o íntimo da consciência individual – de internis nec Ecclesia –, mas é missão essencial ao representante de Jesus Cristo na Terra expor a doutrina da Igreja sobre fé e moral. A esse propósito, é estarrecedora a notícia de que o casamento homossexual foi aprovado, no Estado americano de Illinois, graças às instâncias de um deputado católico, Michael J. Madigan, que conseguiu obter a pequena dezena de votos necessária para que a nova lei fosse aprovada com o argumento de que, se o Papa dizia “eu não sou ninguém para julgá-la”, menos ainda o poderia ele.
e. “La religione ha il diritto di esprimere la propria opinione a servizio della gente, ma Dio nella creazione ci ha resi liberi: l’ingerenza spirituale nella vita personale non è possibile”. ─ Nos pontos fundamentais do dogma e da moral, a doutrina católica não tem “opiniões” mas certezas. O apostolado, a formação doutrinária, o aconselhamento na direção espiritual não podem ser considerados “ingerência” na “vida pessoal” de ninguém. Nos documentos pontifícios anteriores ao Vaticano II, como a Encíclica Libertas Praestantissimum, de Leão XIII, e nos manuais da neo-escolástica, a verdadeira noção da liberdade vem exposta de modo claro, sem relativizações.
f.   “Non possiamo insistere solo sulle questioni legate ad aborto, matrimonio omosessuale e uso dei metodi contraccettivi. Questo non è possibile”. ─ Essa frase vem evidentemente desestimular as magníficas campanhas que têm sido promovidas em todo o orbe contra aqueles flagelos. É grave que essa intervenção papal se dê exatamente quando do auge de algumas dessas companhas.
g. Il parere della Chiesa, del resto, lo si conosce, e io sono figlio della Chiesa, ma non è necessario parlarne in continuazione”.. ─ É igualmente estarrecedor que a posição da Igreja sobre esses pontos fundamentais da moral seja qualificada como simples “parere”. E não se vê que o texto dê a devida atenção ao dever enunciado por São Paulo, de “insistir oportuna e importunamente”.
h. Una pastorale missionaria non è ossessionata dalla trasmissione disarticolata di una moltitudine di dottrine da imporre con insistenza”. ─ Essa afirmação constitui grave condenação da neo-escolástica, como anotamos no mencionado artigo “Grave lapso teológico do Padre Federico Lombardi”.
i.    L’annuncio dell’amore salvifico di Dio è previo all’obbligazione morale e religiosa”.. ─ O que fica insinuado nessa frase não é tanto a antecedência temporal do “annuncio dell’amore salvifico di Dio” em relação às obrigações morais e religiosas, mas é sobretudo a ideia modernista de que realmente importante é o amor de Deus, ao passo que as obrigações morais e religiosas são relativas, podendo até variar segundo a consciência de cada qual.
j.    I dicasteri romani (…) quando non sono bene intesi, invece, corrono il rischio di diventare organismi di censura. È impressionante vedere le denunce di mancanza di ortodossia che arrivano a Roma”. ─ Essa declaração revela, de um lado, o zelo dos fieis católicos, que os leva a batalhar pela pureza da Fé. E, de outro lado, que seu autor parece adotar a norma liberal  do “politicamente correto” de nossos dias, segundo a qual toda censura é má. A santa Igreja sempre ensinou que, em princípio, a censura é indispensável à preservação da Fé.
k.   “Non è stata fatta ancora una profonda teologia della donna [...] Quale deve essere il ruolo della donna nella Chiesa?”. ─ Como já nos perguntamos no mesmo artigo “Grave lapso teológico do Padre Federico Lombardi”, não é verdade que tal afirmação sugere uma modernização do papel da mulher na Igreja, favorecendo em tese a posição dos que querem até a ordenação sacerdotal de mulheres?
l.    Considero invece preoccupante il rischio di ideologizzazione del Vetus Ordo, la sua strumentalizzazione”. ─ Para o bom entendedor, essa frase manifesta o fundo do pensamento do Papa Francisco sobre a Missa tradicional. Não se vê que seja possível pôr á margem, com uma simples palavra ligeira, os graves problemas de Fé, e portanto de consciência, que a Missa nova suscita. 
m. Dio è reale se si manifesta nell’oggi. [...] Dio si manifesta in una rivelazione storica, nel tempo. Il tempo inizia i processi, lo spazio li cristallizza. Dio si trova nel tempo, nei processi in corso. ─ Essa formulação induz à tese modernista de que a Revelação não terminou com a morte do último dos Apóstolos, tese essa que, por sua vez, leva à evolução intrínseca do dogma.
n. “in questo cercare e trovare Dio in tutte le cose resta sempre una zona di incertezza. Deve esserci. Se una persona dice che ha incontrato Dio con certezza totale e non è sfiorata da un margine di incertezza, allora non va bene. Per me questa è una chiave importante.” ─ Está aí, pelo menos insinuada, a profissão de uma Fé que admite incertezas.
o. “non dobbiamo confondere la genialità del tomismo con il tomismo decadente. Io, purtroppo, ho studiato la filosofia con manuali di tomismo decadente”.. ─ Para quem tem uma noção da história do tomismo, ainda que sumária, essa declaração constitui uma condenação genérica e total da magnífica neo-escolástica dos séculos XIX e XX.

9] Diante dessas passagens da Civiltà Cattolica, vê-se que, quanto ao mérito, nada ou pouco significa a retirada da entrevista de La Repubblica do site vaticano.  E vê-se também como é precária a afirmação do Pe. Lombardi de que o texto supresso teria “equívocos”, por isso não exprimindo com exatidão o pensamento papal. Equívocos, quando realmente existem, são por natureza ocasionais, circunstanciais, aleatórios, de modo tal que, se numerosos deles, num texto longo, caminham todos na mesma direção, como é aqui o caso, não se haveria de falar em “equívocos”, mas em algo de bem diverso.

Está se perdendo a “italianità” tradicional da Santa Sé

10] Há séculos a Santa Sé tem seus modos de proceder profundamente marcados pelo espírito italiano. De forma muito especial, esse estilo peninsular se revela na diplomacia clássica do Vaticano, sábia, silenciosa, sóbria, altamente eficiente. Esse modo de ser e agir traz em si um savoir faire extraordinário, que sabe harmonizar as virtudes entre si opostas, como a justiça e a misericórdia, a magnificência e o espírito de pobreza. Sabe distinguir, compreende que a verdade está nas nuances. É uma escola de seriedade, de humildade, de organicidade, de habilidade, do senso das conveniências e medidas. No passado, grandes figuras estrangeiras, como o Cardeal Merry del Val, Secretário de Estado de São Pio X, souberam assimilar em si e no seu proceder esse magnífico espírito italiano. Em teologia, o mesmo ocorreu com o alemão Cardeal Franzelin, com o francês Cardeal Billot e com tantas outras personalidades insignes.

11] Infelizmente, a internacionalização do Colégio cardinalício e da Cúria romana nem sempre está mantendo em sua integridade e pureza os valores dessa “italianità” multissecular. Assim, despontam cá e lá, em espíritos das mais diversas nacionalidades, manifestações do “esto pro lege voluntas”, bem como de certa espontaneidade vistosa e pouco refletida, erigida por alguns como norma básica da vida social. Veja-se, por exemplo, nesse episódio das duas entrevistas papais, como desde o início a questão foi mal encaminhada, com ofensas a verdades da Fé e tradições curiais, podendo-se recear que se tenha tornado inevitável, em futuro próximo, a eclosão de uma crise mais pesada.

12] Com muita razão, o ilustre professor Pietro De Marco escreveu, a propósito da crise provocada pelas duas aludidas entrevistas do Papa Francisco, que, ”para quem não seja propenso à prosa relativista desta modernidade tardia”, um dos “sinais preocupantes” da situação de hoje é “a falta de controle, por pessoas de confiança, mas sábias e cultas, e italianas, dos textos destinados à circulação, talvez pelo convencimento papal de que isso não é necessário” ([iii]).

Breve esclarecimento e conclusão

13] A fim de evitar mal-entendidos, deixo claro que a italianità de que falo – sóbria, lúcida, ágil, orgânica, católica – talvez seja hoje rara, nos meios vaticanos como na Itália em geral. E, ademais, caberia perguntar se tal italianità autêntica é conciliável com o modernismo, o qual, negando a verdade objetiva (ver, neste site, Garrigou-Lagrange, citado em meu artigo “Sentir com a Igreja é sentir com o Vaticano II ?”), não pode exprimir-se convenientemente na lógica aristotélica, à luz dos primeiros princípios da escolástica, de maneira racional, séria, clara e transparente.

14] Que Nossa Senhora do Divino Amor, padroeira da cidade de Roma, conceda suas melhores graças ao Papa Francisco, bem como preserve a autêntica italianità na vida vaticana, e faça com que sem delongas seja o modernismo extirpado dos meios católicos, como o há necessariamente de ser, dado o dogma da indefectibilidade da santa Igreja, em que todos cremos com Fé verdeira, que inadmite dúvida.





NOTAS:
[i]     Artigo pubicado no blog do autor, Lo Straniero, em 16.11.13, - http://www.antoniosocci.com/2013/11/il-vaticano-mette-fine-agli-equivoci-cancellata-l-intervista-di-scalfari/ ,
[iii]   Artigo “Un messagio ‘liquido’”, http://chiesa.espresso.repubblica.it/articolo/1350619 ─ Pietro De Marco, historiador e sociólogo, é professor na Faculdade de Florença e na Faculdade de Teologia da Itália Central.


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